SUMMA DÆMONIACA (Parte I) Portugues
SUMMA
DÆMONIACA
Introdução
Optei
por escrever um livro nos moldes dos antigos tratados escolásticos,
o que significa uma obra distribuída em um grande número de
questões de extensão e peso teológico variáveis. Por que? Porque
me pareceu o modo mais livre de tratar o tema de todos os pontos de
vista possíveis. E, mais ainda, me pareeu esta a maneira de poder
abranger ao demônio e todos os seus aspectos e detalhes. Em uma
matéria como esta, os detalhes se tornam muito importantes. Cada
detalhe, fornecido pela Bíblia, sobre o demônio não é em vão.
Sempre me fascinaram aqueles velhos tomos escolásticos, escritos com
letras góticas, em que os temas teológicos iam aparecendo com uma
lógica férrea e, ao mesmo tempo, segundo as preferências e
interesses do monge (ou religioso), que ditava o texto a ser escrito
ao secretário, o qual estava sempre atento, debruçado sobre a
escrivaninha.
Minha
tese sobre o exorcismo (a que escrevi para minha Faculdade) estava
repleta de notas de rodapé, de referências bem conhecidas e de
temas que os acadêmicos consideram sérios e graves. Esta obra
queria escrevê-la de modo mais livre, despojado de vínculos a
esquemas fixos e pré-concebidos. Não me teria sido difícil dar ao
conteúdo do livro um aspecto mais organizado e formal, mas escrevi a
obra tal qual gostaria de lê-la. Agora, com o livro concluído,
contemplo uma construção, uma construção intelectual sobre o
mundo angélico decaído.
Nota:
O título em latim desta obra, Summa Dæmoniaca, se traduz como Suma
(relação, lista) de questões relativas ao demônio.
Em
latim, o substantivo summa significa “suma, generalidade, relação,
lista, conjunto”. O adjetivo Dæmoniaca pode significar “maligna,
demoníaca”, mas também “aquilo que é relativo ao demônio”.
Com relação ao adjetivo, é este segundo sentido que se tomou ao
título.
Este
livro me lembra uma construção arquitetônica medieval, com seus
pilares, galerias e recantos. Um livro com seus capitéis, pórticos
e criptas. Por esta obra acerca do demônio pode-se ir e vir,
percorrê-la exaustivamente ou, simplesmente, passear através ela. É
uma construção teológica. Uma espécie de labirinto demoníaco com
suas questões, partes, apêndices, suplementos e anexos. Uma
construção de seu início ao fim, erigida com conceitos ao invés
de pedras; ou melhor dizendo, com as pedras dos conceitos. E toda
essa construção erguida sob as firmes leis da lógica, todo este
aparente labirinto sujeito a uma estrutura férrea que se oculta sob
a aparente selva de questionamentos.
Não
esqueça o leitor, durante sua leitura (durante o passeio através do
interior dessa construção), o que não foi esquecido durante a
redação desta obra: que toda construção teológica foi (é e
sempre será) erguida para a maior Glória de Deus. Espanta-nos o
fato de que, até mesmo, uma construção teológica acerca dos
demônios possa proclamar o Poder da onipotente mão divina!
“Diante
do mal está o bem; diante da morte, a vida, assim também diante do
justo está o pecador. Considera assim todas as obras do Altíssimo;
estão sempre duas a duas, opostas uma à outra.” (Eclesiástico
33:15)
Tratado
de Demonologia
Parte
I: A Natureza Demoníaca
1.
O que é um demônio?
Demônio
é um ser espiritual, de natureza angélica, condenado eternamente.
Não tem corpo; não existe em seu ser nenhum tipo de matéria sutil
nem coisa alguma semelhante à matéria. Assim, [o demônio] tem uma
existência de caráter inteiramente espiritual. Spiritus, em latim,
significa “sopro, hálito”. Não tendo corpo1, os demônios não
sentem sequer a mínima inclinação para pecados que possam cometer
com [por meio do] o corpo. Portanto, a gula ou a luxúria são
impossíveis para eles2. Podem tentar os homens a pecarem nessas
áreas, porém somente conseguem perceber esses pecados de um prisma
meramente intelectual, pois não têm [não são dotados de] sentidos
físicos. Os pecados dos demônios, portanto, são exclusivamente
espirituais.
Os
demônios não foram criados maus. Ao serem criados, lhes foi
oferecida uma “prova”, uma prova que deveria preceder
imediatamente à visão da essência da Divindade. Antes da prova,
viam a Deus, mas não à sua essência. O próprio verbo “ver” é
aproximativo, pois a visão angélica era uma visão intelectual.
Como a muitos se tornará difícil entender como podiam ver a Deus (e
conhecê-lo), mas não ver (e conhecer) sua essência, tenho que
propor uma comparação nestes termos: viam a Deus como uma Luz, lhe
ouviam como uma voz majestosa e santa, mas seguiam sem que o rosto de
Deus se desvelasse. De todo modo, ainda que não perscrutassem sua
essência, sabiam que era seu Criador e que era santo, Santo entre os
santos.
Antes
que pudessem penetrar na visão beatífica dessa essência divina,
Deus lhe impôs uma prova. Nessa prova, uns obedecerão [a Deus],
outros desobedecerão. Aqueles que desobedecerão, irreversivelmente
se transformarão em demônios. Eles mesmos se tornarão no que são.
Ninguém os fez assim.
Houve
algumas fases na psicologia dos Anjos antes que se transformassem em
demônios. Estas fases se deram fora do tempo material. Ocorreram no
eon3. Ocorrendo no éon, essas fases a nós, humanos, pareceriam ter
sido quase instantâneas. Mas, para o que a nós pareceria tão
breve, a eles foi como um século ou milênio.
As
fases de transformação dos anjos [que desobedeceram] em demônios
foram as seguintes:
No
início, lhes penetrou a dúvida; a dúvida de que, talvez, a
desobediência a Deus pudesse ser o melhor. No momento em que,
espontaneamente, aceitaram a possibilidade de que a desobediência a
Deus fosse uma opção a considerar, aí mesmo já pecaram. No
princípio, essa aceitação da dúvida consituiria [apenas, embora
não pouco] um pecado venial. Pouco a pouco, tal pecado venial
evoluiu para o pecado grave. Mas, nesse ínterim, nenhum dos anjos em
dúvida estava disposto a, irreversivelmente, afastar-se de Deus; nem
sequer o Diabo. Posteriormente, quando foi se acomodando em suas
inteligências aquilo que suas Vontades haviam escolhido, não
obstante o ditame de suas inteligências, as quais os recordavam de
que a desobediência [a Deus] era contra a razão [i.e.,
irracional].
Mas,
suas Vontades se afastavam, mais e mais, de Deus. Como consequência
disso, suas inteligências foram aceitando, como verdadeiro, o mal
que haviam escolhido. Suas inteligências, aí, estavam já se
cristalizando no erro. A vontade de desobedecer foi se mantendo mais
firme, tornando-se essa determinação cada vez mais arraigada. Suas
inteligências buscavam cada vez mais razões para que sua escolha
permanecesse justificável.
Finalmente,
esse processo levou ao pecado mortal, que se deu em um momento
concreto, por uma ato de Vontade. Ou seja, cada anjo [dos que
desobedeceram] não apenas quis desobedecer, mas inclusive optou por
ter uma existência à margem da Lei Divina. Não era mais somente um
resfriamento do Amor a Deus; já não era uma desobediência menor a
algo que lhes fosse difícil de aceitar. Na Vontade de muitos deles,
surgiu a ideia de um destino separado da Trindade, um destino
autônomo.
Aqueles
que perseveraram neste pensamento e decisão, começaram um processo
de justificação desta escolha; um processo em que trataram de se
autoconvencer de que Deus não era Deus, de que Deus era um espírito
mal, de que podia ter sido seu Criador, mas que n’Ele havia erros,
falhas. Começavam a flertar com a possibilidade que surgira em suas
inteligências: uma existência apartada de Deus e de suas normas,
que parecia ser mais livre. A normas de Deus, a obediência a Ele e à
Sua Vontade tornaram-se para eles, pouco a pouco, coisas opressoras e
pesadas. Deus passava a ser visto como tirano de quem deviam se
libertar.
Esta
nova fase de afastamento de Deus já não significava apenas buscar
uma existência fora da Divindade, mas que Deus também passava a
representar um empecilho grave à sua Liberdade. Pensavam que a
beleza e felicidade do Mundo Angélico poderiam ser mais válidas sem
um opressor. Por que havia um Espírito que se elevava acima dos
demais espíritos e sua Vontade deveria ser imposta às dos outros?
“Não somos crianças nem escravos”, deviam ter pensado.
Deus
já não era mais um ser ao qual haviam dado as costas, mas lhes
começava a converter-se no próprio Mal. Desde aí, começaram a
odiá-lo4. As advertências divinas para que se voltassem para Ele
eram consideradas [pelos anjos rebeldes] como intervenções
inaceitáveis. Nesta fase, o ódio cresceu mais em uns [corações
rebeldes] e menos em outros.
Pode
nos surpreender a ideia de um anjo chegar a odiar a Deus. Mas, há
que se entender que, para eles, Deus já não representava o Bem,
senão um obstáculo, a opressão, as algemas dos mandamentos e a
falta de liberdade. O ódio deles nasceu com a energia de suas
Vontades resistindo, uma vez após outra, às chamadas de Deus que,
como um Pai, os buscava. Podemos dizer, também, que o ódio [desses
anjos] surgiu como reação lógica de uma Vontade que deve
afirmar-se em sua decisão de abandonar a casa paterna, assim para
usar um exemplo que nos seja mais compreensível. Quero dizer que
alguém que se vai de casa, a princípio, simplesmente quer ir-se
embora dali; mas, se seu Pai lhe chama uma ou outra vez para que
retorne, o filho acaba fulminando seu pai, gritando: “Deixe-me em
paz!”. Deus, então, os chamava, pois sabia que por quanto tempo
mais suas Vontades estivessem afastadas d’Ele, mais eles
tornar-se-iam certos [da decisão] de seu afastamento.
Obviamente,
alguns anjos que se afastaram de Deus, num primeiro momento,
[desertaram da rebelião e] acabaram por voltar ao seio de Deus. Esta
foi a grande batalha nos Céus, da qual se fala em Apocalipse:
“E
houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o
dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; mas não
prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus.
E
foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo,
e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e
os seus anjos foram lançados com ele
(Apocalipse
12:7-9)
Como
os anjos podem lutar entre si? Se não têm corpos, que armas podem
ser usadas? Os anjos são seres espirituais; o único combate que
podem travar entre si é de ordem intelectual. As únicas armas que
podem brandir são os argumentos intelectuais. Essa luta [entre os
anjos] foi um combate intelectual. Deus enviava a graça para que
voltassem à fidelidade ou se mantivessem [firmes] nela. Os anjos
[fiéis] ofereciam argumentos aos [anjos] rebeldes para que
retornassem à obediência. Os anjos rebeldes interpunham suas razões
para fundamentar sua postura e para incitar a rebelião entre os
[anjos] fiéis. E, nessa conversação entre as miríades incontáveis
de anjos, houveram baixas [perdas] de ambos os lados: [alguns] anjos
rebeldes regressaram à obediência; anjos fiéis foram convencidos
pela sedução dos raciocínios malignos.
A
transformação [dos anjos rebeldes] em demônios fora progressiva.
Com o transcorrer do tempo ━ o éon é um tipo de tempo ━, alguns
[rebeldes] odiariam mais a Deus, outros menos. Uns tornaram-se mais
soberbos, outros não tanto. Cada anjo rebelde fora deformando-se5
mais e mais, cada um em alguns pecados específicos. Também assim,
de outro modo, os anjos fiéis foram santificando-se
progressivamente. Uns anjos se santificaram mais sobre uma virtude,
outros sobre outra.
Cada
anjo [fiel] se fixou em um aspecto ou outro da Divindade6. Cada anjo
[fiel] amou com uma [certa] medida de amor. Por isso, no grupo dos
[anjos] fiéis, sucedeu uma série de distinções [entre eles],
segundo a intensidade das virtudes que cada um praticou mais.
Cada
anjo tinha sua própria natureza dada por Deus, mas cada um
santificou-se segundo uma [certa] medida própria, segundo a graça
de Deus e a correspondência da própria Vontade. Isto vale também,
só que de modo contrário, para os demônios. Cada um [dos anjos que
se tornaram demônios] recebeu de Deus uma natureza, mas cada um
deformou-se segundo seus próprios caminhos extraviados.
Por
isso, a batalha findou quando cada um já estava encapsulado, por
assim dizer, em sua condição irreversível. Chegou um momento em
que só poderia haver mudanças acidentais em cada ser espiritual.
Aos demônio, lhes chegou um instante em cada um se manteve firme em
sua imprudência, em seu ciúme, ódio, inveja, soberba,
egolatria...
A
batalha havia acabado! Poderiam seguir discutindo, falando,
disputando, exortando-se uns aos outros, por milhares de éons, mas
assim mesmo só haveria mudanças acidentais. Foi, então, quando os
anjos foram admitidos na Presença Divina. Aos demônios, foi-lhes
deixado que se afastassem definitivamente. Foram relegados à
situação de prostração moral à qual cada um tinha se
colocado.Como se pode deduzir, não é que os demônios tivessem sido
enviados a um local trancado, com chamas eternas e aparatos de
tortura, mas que são deixados como estão; são abandonados à sua
própria liberdade e Vontade. Não foram levados a parte alguma. Os
demônios não ocupam lugar; não há aonde pudessem ter sido
levados. Não há aparatos de tortura nem chamas que lhes possam
atormentar, ou mesmo correntes que lhes possam prender. Tampouco, os
anjos fiéis não entraram em lugar algum. Simplesmente, receberam a
graça da visão beatífica. Tanto o Céu dos Anjos como o Inferno
dos Demônios são estados. Cada anjo leva em seu interior seu
próprio Céu [ou santuário], esteja onde esteja [ou melhor, aja
como aja, pense como pense]. Cada demônio, faça o que faça, leva
dentro de si seu próprio Inferno.
O
momento em que já não havia mais a “procura” [de Deus por seus
anjos], é precisamente quando um anjo vê a Essência de Deus. Pois,
depois de ver a Deus, nada mais lhe poderá fazer mudar de opinião.
Depois de [alguém] ter visto a Deus, jamais poderá escolher [ou
fazer] algo que lhe ofenda o mínimo que seja. Pois a inteligência
compreenderia que seria escolher [ou melhor, considerar a opção]
entre esterco e um tesouro. O pecado, depois desse momento, é
impossível. O anjo, antes de adentrar ao Céu, compreendia a Deus, o
que era e o que corroborava sua Santidade, Onipotência, Sabedoria,
Amor, etc. Depois de ser admitido na contemplação de Sua Essência
[a de Deus], não só compreende, mas então a vê. Ou seja, [não
apenas conhece, mas] vê sua Santidade, Amor, Sabedoria, etc. O
espírito, ao ver aquilo, se preenche de tal amor, de tal veneração,
que jamais, sob qualquer hipótese, quer apartar-se d’Ele. Por
isso, [então,] o pecado passa a ser impossível [para os anjos
fiéis].
O
demônio, no entanto, se torna irrevogavelmente preso ao que
escolheu, desde o momento em que Deus [por sua Misericórdia], decide
não insistir mais. Chega um tempo em que Deus decide não mais
enviar graças para o arrependimento [dos anjos rebeldes]. Pois, cada
graça de arrependimento só pode ser superada, vencida, afirmando-se
[o anjo rebelde] ainda mais em seu ódio. Deus, então, vê que
enviar mais graças só faria com que o Demônio confirmasse, com
ainda mais força, o que sua Vontade escolheu [para si]. Eis o
momento em que Deus-Amor dá as costas7 [ao Demônio], e deixa que
seu filho siga seu próprio caminho. Deixa que o Demônio siga sua
vida à parte [ou, como dizem por aí, deixa-o para que viva em
paz...].
Por
um lado, não há como determinar em qual dado momento um anjo pode
se tornar um demônio, mas um processo assim é lento, gradual e
progressivo. Todavia, por outro lado, por mais longo que tenha durado
esse período prévio (bem como o que se segue a ele), sabemos que há
um momento preciso em que o espírito angélico deve tomar a decisão
de rejeitar ou não ao seu Criador.
Acima,
dissemos que nesse processo tem lugar o retrocesso, sendo este a
celestial batalha angélica de que trata o Apocalipse, cap. 12, vs. 7
a 9. Mas, chega um momento nesta batalha no qual os demônios mais e
mais se distanciam dos anjos fiéis. Não faria sentido seguir
insistindo; o Criador respeita a liberdade de cada um.
Os
demônios aparecem deformados nas pinturas e esculturas antigas e
modernas, sendo muito adequada essa forma de representá-los, pois
seguem sendo espíritos angélicos, porém tendo sua Inteligência e
Vontade deformadas. Fora nestes dois últimos itens, seguem sendo
anjos tanto como quando foram criados. O demônio é,
definitivamente, um anjo que decidiu seguir seu destino longe de
Deus. É um anjo que quer viver livre, sem amarras. A solidão
interior na qual se verá a si mesmo pelos séculos dos séculos, o
ciúme que lhe afeta sabendo que os [anjos] fiéis gozam da Visão de
um Ser Infinito, o leva a encarar, sempre e sempre, seu pecado. Se
ele odeia a si mesmo, então odeia a Deus e a todos que lhe deram
razões para exilar-se.
Entretanto,
nem todos [os demônios] padecem da mesma forma e pelos mesmos
motivos, embora a raiz de seus sofrimentos seja a mesma no Tempo.
Alguns anjos, durante a batalha se deformaram [em sua Inteligência e
Vontade] mais do que outros. Os mais deformados sofrem mais. Mas,
como dito acima, aqui e sempre adiante, deve-se entender essa
deformação como espiritual, de sua Inteligência e Vontade.
A
Inteligência está deformada, obscurecida, pelas mesmíssimas razões
com as quais cada um justificou sua partida, sua libertação. A
Vontade impôs à Inteligência sua decisão, e a Inteligência,
então, se viu impelida a justificar tal decisão. A Inteligência
funcionou como um instrumento de justificação, de argumentação
acerca daquilo que a Vontade o incitava a aceitar. Como se pode ver,
tal processo descreve uma extraordinária semelhança com o caminho
da corrupção humana. Não esqueçamos que o ser humano é um
espírito dentro de um corpo. Se excetuarmos os pecados carnais, o
processo interior que leva uma pessoa boa a enveredar para o crime,
extremismos ou terrorismo, é, em suma, o mesmo [que aquele que levou
alguns anjos a se tornarem demônios]. Essencialmente, o conceito de
pecado, tentação, de progressão da própria iniquidade, é
idêntico para espíritos de anjos caídos e para espíritos humanos,
pois os pecados humanos são, essencialmente, espirituais, ainda que
levados a termo por meio do corpo.
A
criança é infantil; assim, no princípio, o anjo, ao ser criado,
não tem qualquer experiência. A pessoa humana sofre tentações por
outras pessoas, assim como os anjos por seus pares. O ser humanos
pode vir a pecar por princípios morais, tais como o amor pela
Pátria, a honra de sua Família ou o bem-estar de um filho seu. O
espírito angélico também tinha em si grandes fatores intelectuais
que, ainda que diferentes daqueles dos humanos, sugeririam um
complexo de pensamentos análogos àqueles mesmos que conhecemos da
psicologia humana.
Nós,
humanos, também somos seres espirituais, embora nos manifestemos por
corpos físicos. Precisamos apenas olhar para dentro de nossas almas
para entender como um outra classe de seres pode cair sob o pecado e
corromper-se. Assim, refletindo sob esse prisma, o pecado dos anjos
caídos já não nos resulta tão imcompreensível, justamente quando
torna-se mais [parecido e] próximo.
2.
Por que Deus levou os Espíritos Angélicos à prova?
Por
que [Deus] não concedeu a visão beatífica a todos quantos n’Ele
creram? Por que arriscou a que alguns se convertessem em demônios?
Deus poderia ter criado seres angélicos e, diretamente, ter-lhes
concedido a visão beatífica. Isto era perfeitamente possível à
Sua Onipotência e não teria havido nenhuma injustiça se o fizesse.
Mas, havia três grandes razões para fazê-los passar [ao menos] por
uma fase de provas antes de conceder-lhes a visão beatífica.
A
razão menos importante de todas era que Deus tinha de dar a cada ser
racional algum grau de felicidade [ou beatitude]. Todos no Céu veem
a Deus, mas nenhum deles gozar [da Presença] d’Ele em um grau
infinito, pois isso é impossível. Somente Deus goza infinitamente
[ou é infinitamente Feliz em Si mesmo]. Cada ser finito goza ao
máximo, sem desejar mais, porém num grau finito. Goza de uma forma
limitada de um Bem ilimitado. A comparação que cabe usar para
compreender este conceito metafísico é cada ser racional consiste
num vaso, enchendo-o Deus até suas bordas, plenamente. Mas, cada
vaso é de uma determinada medida.
Deus,
em sua Sabedoria, determinou algo especialmente inteligente: cada um
determinaria o grau de glória a qual gozaria durante a Eternidade.
Tendo em vista que isto seria para sempre, daí ter sido tão
importante. Deus deixou isto em nossas mãos. Já que cada um de nós
teria um grau ━ e isto é inevitável ━, então que determinasse
cada um qual seria. De que modo? Mediante uma prova. Segundo a
generosidade, o Amor, a constância e demais virtudes que venhamos a
manifestar nessa prova, assim, dessa medida será o grau. Como se
pode ver, é uma disposição magnífica das coisas, em que se
manifesta a infinita Sabedoria de Deus.
Se
tal razão exposta é importante, considero, todavia, que é ainda
mais [importante] considerar o fato de que o único momento em que um
espírito pode desenvolver sua Fé em Deus, sua generosidade, é
justamente aquele em que não é capaz de perceber como tal. Depois
de percebê-lo, ficará [imensamente] grato pelo que contemplou
[porém, somente depois de haver passado por tal momento]. Mas, tal
Amor generoso na Fé, essa confiança em Deus quando só há Trevas
em redor, é possível apenas antes da visão beatífica. Depois, já
não será possível [essa distinção entre escurecimento e
Iluminação]. Tudo será possível, menos isso. Digamos que é um
aspecto do espírito que, ou se desenvolve antes da visão frontal da
Essência Divina, ou depois torna-se já absolutamente impossível.
Por isso, a prova [e, analogamente, as tentações que nos assaltam]
é um dom de Deus, para que em nós germine a Flor da Fé com todos
os seus possíveis frutos. Essa flor, em nós, já não poderá
nascer durante a Eternidade. Já não poderá haver Fé [por não ser
possível nem necessária] onde houver a Visão. E, através da Fé,
bem como em consequência dela, advém os frutos subsequentes. Cada
anjo faria germinar mais uns frutos, menos outros.
Sobretudo,
o tempo de provas dava a possibilidade de que nascessem e
desenvolvessem as virtudes teologais. Depois, inclusive, alguns dos
anjos desenvolveriam mais a virtude da perseveranças, outros da
humildade, e outros ainda a da intercessão [i.e., a oração
intercessória], etc.
Obviamente,
conceder a um ser a possibilidade de que nele nasça a Fé significa
arriscar que nele nasça não a Fé, mas o Mal. Deus, ao conceder a
Liberdade, sabe que, uma vez concedida, a Liberdade pode levar tanto
ao Bem como ao Mal. Deus pode criar o Universo como queira, como
deseje, segundo sua Vontade, sem interrupções ou limitações.
Porém, a santidade não se cria; faz-se a si mesma mediante a ação
da Graça. Conceder o dom da Liberdade aos espíritos supõe que
possa surgir alguém como Madre Teresa de Calcutá ou como Hitler.
Uma vez que se concede a dádiva da Liberdade, faz-se com todas as
possíveis implicações. Querer que apareça o Bem espiritual
implica que pode aparecer, ao contrário, o Mal espiritual. No plano
material da Criação, não há Bem espiritual, nem mesmo a mais
ínfima quantidade dele. O Bem do mundo material é um Bem material;
a glorificação do Universo físico ao Criador é uma tal
glorificação material e inconsciente, pois em tal Universo não há
Vida nem espírito próprios. O Bem espiritual é, em qualidade,
superior, mas supõe, necessariamente, admitir este risco. Por isso,
o surgimento do Mal não foi uma reversão dos planos divinos. A
possibilidade do aparecimento do Mal já tinha lugar nos planos
divinos antes mesmo da criação de seres pensantes.
De
qualquer forma, mesmo tendo dito ser necessária a prova para a
determinação do grau de glória, a razão mais importante e
relevante para que Deus concedesse o dom da Liberdade era para
receber Amor de um modo livre [da mesma forma que Ele mesmo o faz].
Sem essa prova, Deus poderia ter recebido a gratidão de todos os
seres aos quais teria dado um certo grau de glória e sem passarem
pelos riscos da prova. Mas, Deus ama e quer ser amado.
O
único jeito de obter esse Amor na Fé, esse Amor que confia, Amor
desinteressado na obscuridade daquilo que, todavia, não vê [nem
contempla], era propor essa prova. Volto a repetir que o mesmo Deus
que pode dar origem a miríades de Universos com apenas um ato de Sua
Vontade, não pode criar esse Amor que nasce daquele que é provado
no sofrimento da Fé. O Amor a Deus não se cria, é uma doação da
parte de Sua criatura.
3.
Por que Deus não suspendeu a Liberdade ao ver que começavam a
pecar?
Por
que Deus não retira a Liberdade ao ver que alguém se encaminha para
o Mal? Não o faz mesmo, pois isso significaria apostar que tal
espírito estaria fadado, irremediavelmente, a cair sob o Mal.
Permitir-lhe continuar fazendo o Mal supõe oferecer-lhe a chance de
retornar ao Bem. Retirar-lhe a prova faria com que cometesse menos
pecados, mas, então, o espírito que tivesse sido salvo da prova se
petrificaria para sempre no pecado daquele exato momento, para
sempre. Possibilitar que o Mal siga fazendo o Mal lhe dá a
oportunidade de retroceder.
4.
São iguais todos os demônios?
Já
vimos que cada demônio pecou com uma intensidade determinada. Além
disso, cada demônio pecou em um ou mais pecados específicos. A
rebelião teve origem na soberba [ou orgulho]. Mas, dessa raiz de
pecados, nasceram outros tantos pecados. Durante os rituais de
exorcismo, isso fica muito claro: há demônios que pecam mais em
Ira, outros mais em sua egolatria, e ainda outros por desespero, etc.
Cada demônio tem, de forma análoga aos seres humanos, sua
psicologia, sua forma particular de ser. Há aqueles que são mais
eloquentes, outros mais dados a bravatas e galhardias. Em uns, brilha
de forma especial a soberba e, em outros, o ódio. Ainda que todos
tenham se separado de Deus, uns são piores que outros em maldade
[contumácia no Mal].
Depois,
é necessário que nos lembremos que como nos descreveu São Paulo há
nove hierarquias angélicas. As hierarquias superiores são mais
belas e inteligentes que as inferiores. Cada anjo é completamente
distinto dos outros anjos. Não há raças de anjos, para usar um
termo antropológico. Ainda assim, cada um completa sua espécie com
sua individualidade. Obviamente, é possível agrupar os anjos em
grandes grupos ou hierarquias, também chamadas coros, pois se
formaram enquanto cantavam os louvores a Deus. Seu cântico saibamos
não vem pela voz, mas é o louvor espiritual em que os anjos emitem
sua Vontade ao conhecer e amar a [Santíssima] Trindade.
De
cada uma das nove hierarquias, caíram anjos, transformando-se em
demônios. Ou seja, já demônios que já foram Virtudes, Potestades,
Serafins, etc. Ainda que sejam demônios, conservaram seu poder e
inteligência.
Pelo
que fora dito logo acima, fica claro que há também nove hierarquias
demoníacas. Algo que fora comprovado através dos exorcismos é que,
entre eles, há uma supremacia dos superiores sobre os inferiores. Em
que consiste tal poder? É impossível sabê-lo, pois não se sabe
como um demônio [por isso mesmo, feito livre] pode obrigar outro a
fazer algo, pois não há corpo para ser compelido ou coagido. Não
obstante, pude comprovar que um demônio superior pode proibir um
inferior de sair de um corpo durante um exorcismo. Ainda que o
demônio inferior esteja sofrendo e queira sair, o superior pode
impedir-lhe. Como um demônio pode obrigar outro a fazer algo [ou
proibi-lo], sendo este imaterial, repito, continua sendo um problema
que escapa à nossa compreensão.
5.
Zoologia e Demonologia
Poderíamos
dizer que há um certo paralelismo entre a Zoologia e a Demonologia.
Afinal, cada ser angélico sendo distinto de todos os outros, pois
esgota a forma8 angélica que lhe fora dada. Não obstante, é
possível de englobá-los em grandes grupos. Melhor dizendo:
imaginemos que de cada espécie de mamífero existisse apenas um
exemplar. Um único cervo, único gamo, único cavalo, etc. Cada um
deles seria distinto em relação aos outros. Mas, dentro do Reino
Animal, poderíamos agrupar esses seres em uma única espécie ━ a
dos mamíferos ━, não porque enquanto seres vivos sejam iguais
entre si, senão por serem mais semelhantes entre si do que diante
dos seres vivos da espécie dos insetos ou dos peixes. Aqueles
mamíferos seriam distintos entre si, mas seriam agrupados por ser
maior sua semelhança frente às outras classes de seres. Daí que
isso ocorre também com as naturezas angélicas; cada uma é distinta
de outra, mas podem ser reunidas em grandes grupos. Nesse caso, são
nove os tais grupos, segundo a Bíblia:
Serafins;
Querubins;
Tronos;
Dominações;
Virtudes;
Potestades;
Principados;
Arcanjos;
e
Anjos.
Se
as diferenças entre os animais são, por vezes, tão grandes, tais
diferenças no mundo angélico são ainda maiores, pois a forma está
isenta das leis biológicas e físicas. Portanto, se é gritante a
distinção entre uma libélula e uma águia, maiores são as
diferenças entre os elementos de cada natureza angélica. Se é
patente a diferença entre uma joaninha e uma baleia azul, qunto mais
não será entre um ser angélico de primeira e um de nona
hierarquia?
6.
Astronomia e Demonologia
Existe
um certo paralelismo entre a Astronomia e a Demonologia. Um sistema
solar é como uma parábola do que são Deus, os anjos e os demônios.
Deus seria o Astro-Rei (o Sol, obviamente), ao redor do qual orbitam
todos os corpos celestes dos sistema solar, pois Ele é o centro,
iluminando, assim, a todos. O restante dos planetas, asteroides e
satélites seriam os santos e anjos. O esquema de órbita dos
satélites em volta dos planetas seria como uma representação da
iluminação de uns anjos aos outros. Ainda que os satélites girem,
em sentido imediato, em torno dos planetas, também orbitam, em
sentido amplo, ao redor do “Sol”. Deus é o centro, por mais
intermediários que exista [entre os seres e Ele].
Assim
sendo, os demônios seriam tais quais os corpos que se deixaram
afastar da atração do Sol. O Sol os atrai, sem que deixe nunca de
os atrair assim, de os iluminar e de lhes conceder calor. Mesmo
assim, esses corpos se afastaram tanto [livremente] que agora vivem
nas Trevas exteriores, em meio ao frio do vácuo e da escuridão.
Deus continua atraindo-os, em cada instante, cada segundo. Mas eles
já estão irredutivelmente fora do alcance de sua atração e de sua
Luz. O Sol não os priva de sua Luz; são eles que decidiram
dirigir-se em direção oposta.
Muitas
pessoas se perguntam onde está a linha divisória entre a condenação
eterna e a salvação. Esta parábola astronômica oferece Luz sobre
o tema, pois tal linha é como o limite da força da gravidade de um
corpo maior sobre um corpo muito menor. Um deles pode estar já muito
distante, porém se está unido à força da gravidade do Sol, a Ele
está unido. Por outro lado, se o corpo menor vaga já completamente
livre, alheio à Força da Gravidade do Sol, configurada está aí a
condenação eterna [ou seja, o eterno afastamento e extravio].
Se
contemplarmos estas imagens analógicas a partir da Terra, devemos
fazer certos ajustes [juntando, aos planetas e satélites, as outras
estrelas]. Porém, também podemos juntar certos detalhes [e.g.:
incluir a Lua no “cenário”]. Deus seria o Sol, a Virgem
Santíssima seria a Lua, e as estrelas prefigurariam os anjos do Céu.
A diferença entre a Luz do Sol e a das estrelas seria analogia da
diferença entre o Ser de Deus e os dos espíritos angélicos. Os
anjos seriam pálidos fachos de Luz diante da Luz ofuscante e
irresistível de Deus. O mesmo se dá com a diferença entre a Luz da
Lua e das estrelas, prefigurando a ação aparente da Luz refletida
pela Virgem e a irradiada de longe [no sentido espiritual] pelos
anjos. Logo, entre muitas passagens das Sagradas Escrituras, fica
claro que as estrelas, luminosas e brilhando de longe em direção da
Terra, são imagens dos espíritos angélicos9.
7.
Quais os nomes dos Demônios?
Satã
━ é o mais inteligente poderoso e belo dos demônios que se
rebelaram. É chamado de Satã ou Satanás no Antigo Testamento. A
raiz hebraica primitiva deste nome [שטן]
significa “atacante”, “acusador”, “oponente”,
“adversário”.
Diabo
━ é como chama o Novo Testamento a Satã. Diabo vem do verbo grego
diaballo [διαβαλλω, acusar, caluniar] e de diábolos
[διάβολος, acusador, caluniador]. As pessoas usam as palavras
diabo e demônio como sinônimos, mas a Bíblia não. A Bíblia usa o
nome Diabo no singular para referir-se ao mais poderoso de todos os
demônios. As Sagradas Escrituras também o chamam Acusador, o
Inimigo, o Tentador, o Maligno, o “Homicida desde o princípio”,
o “Pai da Mentira”, “Príncipe deste mundo”, a Serpente, etc.
Belzebu
━ este nome é usado muitas vezes também como sinônimo de Diabo.
Tal nome vem da expressão semítica Baal-Zebub [“Senhor das
Moscas”], um dos títulos pelos quais Baal, deus cananeu, era
cultuado na Palestina e em algumas regiões do Mar Mediterrâneo,
principalmente em colônias fenícias. É citado no Antigo Testamento
em 1 Re 1:2.
Lilith10
━ aparece em Is 34:14, considerando-o a Tradição judaica um ser
demoníaco. Na mitologia mesopotâmica, [em idioma sumério, chamado
de Lilitu] é um gênio com cabeça e corpo de mulher, mas com asas e
extremidades [penacho e pés] de pássaro.
Figura
1: Lilith, segundo uma representação da arte suméria.
Asmodeu
━ aparece no livro bíblico de Tobias. Tal nome provém do persa
aesma-daeva, significando “espírito de cólera”.
Seirim
━ aparece em Is 13:21, Lv 17:7 e em Br 4:35, sendo traduzido por
“os peludos”. Vem do hebraico sa’ir [שעיר]
que, analogamente, significa “peludo” ou “bode”.
Demônio
━ do grego daimon [δαίμον], que quer dizer “gênio”, um
tipo de espírito livre, segundo as crenças greco-romanas
pré-cristãs, que não lhe imputavam um caráter necessariamente
maléfico. Mas, a partir do Novo Testamento, tal termo é utilizado
sempre para designar seres espirituais malignos.
Belial
━ ou Beliar, da raiz do nome Baal, significando “senhor”11.
Aparece, por exemplo, em 2 Cor 6:15.
Apolion
━ ou Apollyon. [Nome de origem grega.] Significa “destruidor”,
sendo citado em Ap 9:11. Diz-se que seu nome equivalente em hebraico
é Abbadon, que quer dizer “devastação, perdição, destruição”.
Lúcifer12━
é um nome extra-bíblico que significa “estrela da manhã” [vide
nota nº 12, abaixo]. A imensa maioria dos textos eclesiásticos usa
o nome de Lúcifer como sinônimo mais frequente de Diabo. Inclusive,
o Pe. Gabriele Amorth considera tal nome como o do próprio Demônio,
e o segundo mais importante na hierarquia demoníaca. Sou
inteiramente de acordo com sua opinião, e o que conhecemos acerca
[da prática] dos exorcismos confirmaria que Lúcifer é alguém
distinto de Satã.
O
nome lhe cabe por ter sido um anjo especialmente privilegiado em sua
natureza nos céus angélicos, antes de rebelar-se e deformar-se.
Algumas pessoas traduzem o nome Lúcifer como “portador da Luz”.
Esta tradução é errônea, pois, em latim, tal expressão é
descrita pela palavra luciferarius [vide nota nº 12].
A
título de curiosidade, vos direi que, em um certo [ritual de]
exorcismo, um demônio disse que o cinco demônios mais poderosos dos
Infernos eram, nesta ordem: Satã, Lúcifer, Belzebu, Belial e
Meridiano. É verossímil esta ordem hierárquica [como descrita pelo
demônio citado]? Só Deus o sabe! O que é evidente [verossímil] é
que, pelo testemunho das Sagradas Escrituras e pelos exorcismos [até
então realizados], todo demônio possui um nome. Um nome conferido
por Deus que descreve a natureza de seu pecado. Diferentes nomes
demoníacos ditos [confessados] por eles durante os exorcismos são:
Perversão, Morte, Porta, Morada, etc. Outros, no entanto, confessam
nomes que não sabemos o que significam, tais como: Elisedei, Quobad,
Jansen, Eishelij, etc.
Em
alguns livros de Magia e Bruxaria [também chamados de grimórios],
acham-se grandes listas de nomes de demônios. Essas intermináveis
listas são tão enfadonhas como fraudulentas [fictícias, forjadas,
fabricadas]. Não têm maior valor que o da imaginação de seus
[infelizes] autores. Pois, há quem não se contente em forjar os
nomes dos demônios, mas metem-se em “declarar” o número de
demônios que povoam o Inferno. Essas descrições “detalhadas”
das Legiões infernais são essencialmente fantasiosas, para não
dizer fraudadas. Ir além das poucas informações que as Sagradas
Escrituras nos deixaram significa adentrar ao gênero literário
fantástico, abandonando a terra firme da Palavra de Deus. A Teologia
pode dizer muitas coisas acerca dos demônios, mas sempre num âmbito
geral, trabalhando sobre conceitos, ao invés de lhes aplicar
rótulos. A Teologia, ao investigar essências, não pode se
pronunciar acerca de um demônio concreto [no sentido empírico,
experimental].
Certo
autor de uma dessas listas de demônios [que parecem-se mais com
catálogos telefônicos], disse acerca de um deles, a quem chamava
Xaphan, que teria este sugerido a Satã atear fogo no Céu, mas que
teriam sido lançados ao Inferno que pudessem empreender tão
hediondo ato. Diz mais: que [o tal Xaphan] está encarregado para
sempre de manter acesas as chamas do Inferno. É desnecessário dizer
que aconselho a tal inventor de mitos que leia este livro, onde
descobrirá que nem há como atear fogo ao Céu nem como manter
acessas chamas no Inferno.
8.
Existe o “Tempo” para os Demônios?
Sim,
o tempo passa [também] para os demônios. Não é um tempo como o
nosso (tempo material), mas um tempo próprio dos espíritos, tempo
que é chamado de evo (ævum em latim). Evo é a sucessão de atos de
Entendimento13 e Vontade em um ser espiritual. Assim, os atos da
Razão e da Vontade se sucedem uns aos outros, provocando um “antes”
e um “depois”; “antes” de um determinado ato de Entendimento
ou ato por querer algo [movido pela Vontade].
Desde
o momento em que um “antes” e um “depois”, há algum tipo de
tempo implicado. Portanto, quando se diz que os espíritos do Céu ou
Inferno estão na eternidade, quer dizer que estão em uma
interminável sucessão temporal, uma sucessão de tempo sem fim, com
princípio (momento da criação dos tais espíritos), porém sem fim
[possível]. Somente Deus está em um eterno “presente”, somente
n’Ele não há sucessão de tempo de espécie alguma. N’Ele não
transcorreu nenhum segundo sequer, nem mesmo um “antes” ou
“depois”. A eternidade de Deus é qualitativamente distinta da
eternidade do tempo material (com princípio, porém sem fim) e da
eternidade do evo (relativa ao tempo dos espíritos, com princípio,
sem fim).
Sobre
esta espécie de tempo ━ o evo ━, já discorria São Tomás de
Aquino no séc. XIII, na Primeira Parte da Questão X, artigo 5º, de
sua Summa Theologica14. A alguns, pôde parecer que seu raciocínio
era excessivamente teórico. Mas, ao escutar relatos de pessoas que
passaram por experiências de quase-morte, e que vivenciaram as
sensações próprias de separação do corpo [físico], entrar no
“túnel”, etc., comprovei que quando lhes era perguntado se havia
“tempo” nessa experiência (ou seja, se perceberam a passagem do
tempo), as respostas dadas estavam de acordo com o que São Tomás de
Aquino expunha acerca do evo, ao discorrer sobre os espíritos
imateriais.
9.
Em que pensa um demônio?
Todo
anjo decaído conserva a inteligência própria de sua natureza
angélica e, com ela, segue tomando conhecimento de todas as coisas.
Conhece e indaga, com sua mente, acerca do mundo material e
espiritual, dos planos real e conceitual. Sendo ser espiritual,
eminentemente intelectual, não há dúvidas de que está
constantemente afeito às questões intelectuais. Ele sabe muito bem
que a Filosofia é a mais elevada das ciências. Inclusive, sabe que
a Teologia está um degrau acima da Filosofia, porém ele odeia a
Deus.
No
conhecimento, encontra [seu] prazer, mas também sofrimento. Sofre
sempre que esse conhecimento o leva a considerar a ideia de Deus. E o
demônio percebe continuamente ━ ainda mais que outros seres menos
expressivos ━ a Ordem e a Glória do Criador presentes em todas as
coisas. Até mesmo nas coisas aparentemente mais neutras, ele encara
o reflexo e a lembrança dos atributos divinos.
Mas,
o demônio não está sempre, em cada instante, sofrendo. Muitas,
vezes, simplesmente, pensa. Sofre apenas em certos momentos, quando
se dá conta [da ideia] de Deus, quando volta a se certificar de sua
condição miserável, de sua separação de Deus, quando reverbera o
remorso em sua Consciência.
Há
“tempos” em que sofre mais ou menos; seu sofrimento não é
uniforme15. Ainda mais: a intensidade que marca a deformidade moral
de cada demônio determina as variações de seu sofrimento e
remorso.
Seria
bastante horrível [e doentio] pensar nos demônios como seres
permanentemente em sofrimento, em cada instante e momento. A
separação de Deus produz sofrimento por toda a eternidade, mas é o
pesar por tal afastamento e não um instrumento sádico de tortura,
trabalhando dia e noite, que o faz sofrer. O demônio nem está
sempre empenhado em tentações [contra os seres humanos] nem está
sempre retorcendo-se em dores espirituais indizíveis [como creem
algumas pessoas desequilibradas].
10.
Qual é a linguagem utilizada pelos demônios?
A
linguagem utilizada pelos demônios é exatamente a mesma que a usada
pelos anjos. Os anjos não necessitam de nenhum idioma ou língua
para comunicarem-se entre si, pois o fazem através de espécies
inteligíveis. Espécies inteligíveis são pensamentos que se
transmite entre eles. Nós nos comunicamos por palavras [e sinais];
eles, anjos e demônios, se comunicam, diretamente, através de
pensamentos em estado puro [ou simbólicos], sem necessidade de
mediadores ou sinais. As espécies inteligíveis podem se tratar de
raciocínios, imagens, sentimentos, etc. Sua transmissão é por via
telepática. Ocorrem de acordo com a Vontade de cada um dos seres
angélicos, e podem suscitar diálogos semelhantes ao que
presenciamos entre os seres humanos. As inteligências humanas
comunicam-se através de palavras, as quais são signos sonoros. Os
espíritos angélicos, por sua vez, comunicam-se através de
pensamentos em estado puro.
11.
Onde estão os demônios?
Tanto
as almas dos condenados como as dos demônios não podem deslocar-se
para outros locais do espaço; tampouco, se pode dizer que estão em
outra dimensão. Quê significa estar ou não estar em outra
dimensão, para um espírito? Simplesmente, não estão em lugar
algum! Existem, mas não estão nem aqui nem acolá.
Diz-se
que um demônio está em um local quando atua nesse local. Se um
demônio está a tentar alguém aqui, diz-se que ele está aqui. Se
um demônio se apodera de um corpo ali, da mesma forma diz-se que
está ali. Se um demônio move uma cadeira num fenômeno do tipo
poltergeist, diz-se que ele está realmente em tal lugar. Mas, na
realidade, não está ali, mas apenas atuando ali [através da tríade
Pensamento-Vontade-Ação].
O
Inferno, o Céu e o purgatório são estados. Apenas depois da
ressurreição dos corpos dos condenados, aí sim estarão em um
local determinado e fixo [eterno], e por isso mesmo que só a partir
daí é que o Inferno se tornará em um local concreto. Os corpos dos
bem-aventurados também ocuparão lugar. Por isso, diz-se na Bíblia
que João viu “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1). Daí
depreende-se que os bem-aventurados novamente habitarão a Terra
restaurada após a destruição narrada no Apocalipse. Sabendo que os
bem-aventurados habitarão, em corpos, novamente esta Terra, onde
estarão os condenados? Nada se pode afirmar acerca disto, com
segurança. Alguns pensam que encontrarão lugar no centro deste
mesmo mundo [alguns supõem ser o núcleo do planeta Terra].
12.
Os demônios conhecem o futuro?
Eles
não preveem o futuro, mas podem [com boa probabilidade de sucesso]
conjecturá-lo. Com sua inteligência, muito superior à humana,
podem deduzir muitas coisas que sucederão, para isto sabendo suas
causas determinadas. O que pertence apenas à liberdade humana está
indeterminado e não o conhecem. Não sabem o que eu decidirei
livremente16. Mas, com sua inteligência superior, anteveem os
efeitos das causas [envolvidas] onde nós não veríamos coisa
alguma.
Desde
logo, há ocasiões em que eles sabem, com máxima segurança, o que
sucederá, mesmo nas quais nem o mais perspicaz dos seres humanos
poderia supor tais efeitos, analisando os componentes envolvidos no
cenário. Mas, em outras ocasiões, nem a natureza angélica da mais
elevada hierarquia poderia deduzir o que aconteceria [e se
aconteceria algo, ou não]. Sobretudo, a liberdade humana [à qual
chamamos livre arbítrio] é o grande fator de indeterminação em
suas previsões17.
13.
Pode um demônio fazer algo de bom?
O
demônio não está sempre fazendo o Mal; por vezes, tão-somente
pensa. E, nisso, não faz mal algum, sendo um mero ato inerente à
sua natureza. Com efeito, o demônio não pode realizar atos morais
sobrenaturais. Ou seja, não pode fazer um ato de caridade, de
arrependimento [conversão] sobrenatural [que ocorre apenas mediante
a efusão da Graça], de glorificação genuína de Deus, etc. Pode
até glorificar a Deus, mas à força, não porque queira fazer isso.
Pode arrepender-se de ter se afastado de Deus, porém sem [conseguir]
pedir perdão, reprovando em si apenas o mal que lhe sobreveio por
essa ação, sem remorso por ter ofendido a Deus. E assim,
semelhantemente, pode fazer muitos outros atos naturais com sua
Inteligência e Vontade.
Mas,
o demônio jamais demonstrará a mais mínima compaixão nem a menor
inclinação de Amor para com quem quer que seja. Seu coração
somente odeia, é insensível ao sofrimento dos demais.
14.
O demônio pode experimentar algum prazer?
O
demônio não frui com nenhum de nossos cinco sentidos. Seu gozo é
apenas com sua Inteligência e Vontade. Pode parecer pouca coisa, mas
não é. Os prazeres intelectuais podem se mostrar tão variados como
os de nossos cinco sentidos. Na realidade, são muito mais variados.
O gozo que nos proporciona uma ópera, uma sinfonia, uma partida de
xadrez, um livro, vem de prazeres eminentemente espirituais, ainda
que essa informação nos chegue ao espírito por meio de imagens
sensíveis. O mundo espiritual, visto por nós a partir de nosso
mundo, pode parecer insípido, incolor, tedioso, mas isso é um erro
[de julgamento]. O mundo espiritual é muito mais variado, rico e
agradável do que aquilo que nos oferece o Universo material [mesmo
em sua perspectiva mais harmônica].
Os
demônios gozam dos prazeres, pois suas duas [principais] faculdades
espirituais (Conhecimento e Vontade) seguiram intactas [após a
“queda”]. A forma de ação de sua natureza permaneceu ilesa,
apesar do afastamento de Deus.
O
que não podem fazer é amar com amor sobrenatural. A capacidade de
amar, neles, foi aniquilada na psicologia do demônio. O demônio
pode conhecer, mas não amar [aquilo que conhece].
O
prazer obtido no êxito em fazer um mal é exatamente o mesmo que o
de uma pessoa na Terra quando consegue vingar-se de seu inimigo.
Trata-se de um prazer pleno de ódio, que não traz sossego.
15.
O demônio é livre para fazer mais ou menos males?
O
demônio faz o Mal quando bem quer, nada o pode obrigar a fazê-lo. É
um ser livre, e sua Vontade é que determina quando e o que fazer.
Deseja fazer o Mal, e para fazê-lo é preciso que tente. Mas, para
tentar, tem de insistir. Alguns demônios insistem mais, outros
desistem antes. Há demônios mais decididos e outros mais
preguiçosos [ou displicentes]. Há demônios que, pelo ímpeto de
sua cólera, perseguem as almas como verdadeiros predadores. Outros
demônios estão submersos em uma espécie de depressão e não têm
tanto ódio que leve-os a perseguir tão ardentemente as almas. Mas,
estamos falando de graus, já que todos odeiam a Deus e são
caçadores de almas.
16.
Quais são os mais malignos dentre os demônios?
Poderíamos
pensar que os mais perversos demõnios são os de mais alta
hierarquia, mas não o são. Não há relação entre natureza e
pecado. Uma natureza angélica de última hierarquia pode ser muito
mais perversa que um anjo superior. O mal que pode cometer um ser
livre não depende da Inteligência nem do poder que detém. Sempre
coloco o chefe da SS nazista, Heinrich Himler, como exemplo de
malignidade. Mas, não poderia ser pior que ele algum de seus
subordinados? Claro que sim! Entre os homens, vemos que alguém menos
inteligente e em uma posição social menos relevante pode ser muito
pior e mais perverso que um grande ditador. E o mesmo que acima foi
dito vale tanto para o Mal quanto para o Bem. Um anjo da última
hierarquia pode ter exercitado mais suas virtudes que um de mais alta
hierarquia. Da mesma forma, uma idosa sem estudos, que tenha se
dedicados somente aos afazeres doméstico e à sua Família por toda
a Vida, pode ser mais santa que um arcebispo ou mesmo um Sumo
Pontífice.
Uma
interessante pergunta que é suscitada diante do exposto é se a
hierarquia que nos dá a Bíblia (anjos, arcanjos, principados, etc.)
é uma hierarquia da Graça ou da natureza [válida também para
demônios]. Ou seja, os serafins são os mais santos ou somente os
mais poderosos e nos quais mais brilha o fulgor da Inteligência
angélica. Minha opinião é de que é uma hierarquia segundo a
Natureza [e não segundo o nível de Santidade]. Pois, as descrições
das imagens dos quatro Seres Viventes ao redor do Cordeiro (anjos de
maior hierarquia) dão melhor noção de poder e conhecimento, assim
como que os mesmos nomes das nove hierarquias. O nome principado ou
potestade, para darmos dois exemplos, são nomes que pressupõem a
ideia de Poder. Além do mais, é mais simples elaborar uma
hierarquia da natureza do que da Graça.
***
Parte
II: A Tentação e o Pecado
17.
Por quê pecamos?
Tentação
é a situação em que a vontade tem de escolher entre duas opções,
sabendo ela que uma delas é boa e a outra é má. Porém, sente-se
inclinada a escolher a má. Tem consciência [ou intui] qual é a má
opção; mas, por alguma razão, se vê impelido a optar por ela. O
erro de cair em tentação não é um lapso da Inteligência, nem um
qualquer problema envolvendo debilidade da Razão. Pois, se não
soubesse que tal opção é má, pecaria por ignorância ou simples
erro e, portanto, não estaria pecando de verdade.
Para
pecar, a pessoa deve saber que está optando pela alternativa má.
Não há pecado sem má consciência. Esse pequeno detalhe é o que
torna tão interessante o pecado do ponto de vista intelectual:
afinal, por que escolhemos o Mal sabendo que ele é mal? Eis um
verdadeiro mistério!
Uma
resposta simples, embora não seja falsa nem mesmo explique a
questão, é contestar com a desculpa de que pecamos por fraqueza.
Isto não deixa de ser verdadeiro, mas também é certo que não
somos tão fracos para que não possamos resistir. Se não fôssemos
capazes de resistir, já não haveria pecado, pois não haveria a
escolha por A ou B, a qual é condição sine qua non para que a
realidade do pecado se faça presente, acusando a Consciência do
pecador. Se há pecado, é porque podemos escolher entre opções
distintas. E, por experiência nossa, sabemos que escolhemos sempre o
que desejamos. Se queremos fazer algo, nada nem ninguém poderá nos
obrigar a fazer algo diferente. Assim, por mais fracos [moralmente]
que sejamos, sempre há como resistir às más opções. Pelo que foi
dito, naõ podemos nos eximir de responsabilidade nem pelo campo da
Inteligência nem pelo da Vontade. Fazemos o Mal porque queremos.
Poderíamos
afirmar que fazemos o Mal pelo bem que obtemos por meio dele. Mas,
devemos lembrar que a Inteligência tem como perceber que tal opção
má é uma maçã envenenada [no sentido de ardil, cilada, engano].
Ela [a Inteligência] percebe que é um falso bem, algo que abrange
mais mal do que o bem que pode conter. Por isso, por mais atraente
que nos pareça tal bem, a Consciência nos alerta que não devemos
escolher tal opção. Assim como dizemos que fazemos algo de mal por
nos parecer com um bem, também é certo que sabemos isso que nos
parece bom contém, afinal, um mal real. Assim como é adequado se
explicarmos o mal que fazemos pelo bem que se nos oferece, ainda
assim isso não revela o porquê do pecado em sua totalidade. Quem
sabe esse mistério da maçã envenenada que comemos, mesmo sabendo-a
inoculada de veneno, não podemos aclará-lo de todo enquanto
estivermos com nossas percepções atreladas ao que é material.
18.
Quantas tentações procedem dos demônios?
Não
há quem possa dizer quantas tentações podem proceder dos demônios
e quantas de nosso próprio interior. Mas, parece razoável pensar
que a maioria delas procede de nós mesmos. Não necessitamos de
ninguém para nos submetermos livremente à tentação. Basta que
tenhamos a Liberdade para que possamos usá-la mal. Basta termos que
decidir perante uma questão para optarmos conscientemente pelo
alternativa errada. Conscientemente, sem desculpas, sem poder jogar a
culpa sobre ninguém mais do que sobre nós mesmos.
É
certo que o Demônio primeiro tentou a Mulher. Mas, sem ele,
poderíamos ter pecado da mesma forma. A tentação prescinde do
Demônio, basta-se a si mesma. Se assim não fosse, quem teria
tentado o Demônio?
19.
Podemos ser tentados além de nossas possibilidades?
O
ser humano é débil [fraco], de forma que Deus cuida de nós como a
crianças. Por isso, nos diz a Bíblia:
“Fiel
é Deus, que não permitirá que sejais tentados além de vossas
forças, mas com a tentação os tornará capazes de sobrepujá-la.”
(1
Cor 10:13)
Que
a tentação deve ser permitida por Deus é algo que aparece bem
claramente no Livro de Jó. Mas, também em outra passagem das
Escrituras, justamente antes de sua Paixão, Jesus disse a Pedro:
“Simão,
Simão! O Adversário te reclamou para te peneirar como trigo.”
(Lc
22:31)
“Te
reclamou”, logo, a peneira da tentação deve ser permitida. Não
afirmar essa doutrina significaria que estamos nas mãos de um
destino cego e qualquer, um por mais fraco que seja, pode ser tentado
com um poder e intensidade desproporcionais e maiores que as forças
que aquele ser possui. Portanto, a mensagem é clara e
reconfortante: Deus, como Pai que é, vela para que nenhum de seus
filhos se veja pressionado para além do que pode suportar. Por tudo
isto, se vê a sabedoria que reside naquele velho ditado: Deus
aperta, mas não afoga!
20.
Por que o Diabo tentou a Jesus?
O
Diabo sabia que Jesus era Deus; sabia, portanto, que era impossível
que pecasse. Por que, então, o tentou? E mais, sabia que qualquer
tentação à qual resistisse o santificaria ainda mais como homem e
que, com isso tudo, o Demônio, ao tentar-lhe, se converteria como
instrumento de Jesus. Por que, então, fazer algo inútil e que
serviria para um bem?
A
resposta é simples: o Diabo não pôde resistir ao impulso de
tentar. A tentação para tentar foi demais para o Diabo, tentar o
próprio Deus! Não podia deixar deixasse escapar aquela chance.
Sabia que era impossível fazê-lo pecar, mas não conseguiu resistir
à tentação de tentá-lo, pois para resistir à tal tentação,
deveria contar com a virtude da Fortaleza. E qualquer coisa podemos
esperar de um demônio, menos virtude.
Da
mesma maneira, os demônios fazem coisas que, a longo prazo, os
prejudicam, mas não resistem ao impulso de fazer algo mal naquele
momento, mesmo que, contendo-se, pudessem conseguir realizar um mal
maior depois. Por tudo que se pode constatar, até mesmo os demônios
sofrem com as tentações, procedendo estas de seu próprio
interior.
21.
O Demônio sabe que Deus é impecável18?
Sabe
perfeitamente, tão bem como o mais sábio de todos os teólogos, não
tendo a menor dúvida quanto a isso. Não obstante, quando o Demônio
tentou a Deus feito homem, queria também se convencer de que Deus
não era tão bom como ele acreditava que fosse. Quem sabe se Deus
não era débil, fraco, talvez houvesse um calcanhar de Aquiles na
Divindade que ele, o Demônio, desconhecesse. Se conseguisse que a
Perfeição falhasse em algo, a mesma desmoronaria. Conseguir fazer
Deus pecar lhe parecia algo impossível, mas tinha que tentar. Se
conseguisse corromper a Deus, então ele próprio não seria mais um
pecador, já que bem e mal deixariam de existir [como conceitos].
Bastaria um único e banal pecado da Santíssima Trindade para que a
linha que separava o bem do mal se apagasse para sempre, para que
pudesse [o Demônio] afirmar que, na realidade, nunca havia existido.
Isso se deve a que a Santidade de Deus era a garantia, o penhor,
dessa divisão. Se Deus pecasse, ainda que uma única vez em toda a
eternidade, Deus já não seria Deus. Já não haveria garantia
alguma nesta distinção, nem certeza ou fundamento.
A
própria Inteligência do Demônio lhe dizia que isso era impossível,
mas seu próprio desejo o levou a deformar seus pensamentos. Tinha
que tentar o impossível.
22.
Pode-se chegar a distinguir as tentações procedentes de nós mesmos
das dos demônios?
As
tentações que nos alcançam vindas dos demônios não se distinguem
em nada de nossos próprios pensamentos, já que o demônio nos
tentam infundindo em nós espécies inteligíveis19. Ou seja, o
Demônio introduz em nossa Inteligência, memória e imaginação,
objetos apropriados ao nosso entendimento que em nada se distinguem
de nossos pensamentos. Uma espécie inteligível é justamente isso:
o que há em nosso pensamento quando exercemos a faculdade de pensar,
desde imaginar uma árvore, resolver um problema matemático,
elaborar um raciocínio lógico, compor uma frase, etc. Todas essas
coisas são espécies inteligíveis. Produzimo-las no interior de
nosso espírito racional, mas um anjo também pode produzí-las e nos
comunicá-las silenciosamente.
Entre
nós, seres humanos, comunicamos nossas espécies inteligíveis,
sobretudo, através da comunicação da linguagem, ainda que o
possamos fazer também através, por exemplo, da música e das artes
plásticas. Porém, sempre através de meios ━ media ━ externos,
ao passo que os anjos podem transmitir suas espécies inteligíveis
sem necessidade de meio algum. Por isso, não há maneira de
distinguir o que vem de dentro de nós mesmos, de um anjo, demônio
ou de Deus diretamente.
No
entanto, há pessoas que passam vários anos perseverando em sua Vida
espiritual muito intensa, em espírito de oração, podem testemunhar
que surgem tentações com intensidade bastante surpreendente sem
que, apesar de tudo, tenham alguma razão plausível e que podem ser
de uma persistência estranhíssima. Para dar um exemplo, é claro
que a leitura de um livro contra a Fé produza tentações contra a
mesma Fé. Mas, se essa tentação surge logo em seguida, muito
intensa e persistindo por semanas e mais semanas, isso pode ser sinal
de que se trata de uma tentação demoníaca. Mas, nem mesmo assim
podemos estar seguros. Como regra geral, poderíamos dizer que as
tentações sem causa razoável, muito intensas e persistentes, podem
ser tidas como suspeitas de procederem do Demônio. Porém, com
sinais tão vagos, não temos como estar inteiramente seguros.
Aos
sacerdotes, chegam pessoas de intensa vida de oração e que, sem ter
histórico de problemas psiquiátricos, subitamente lhes ocorre
impulsos de blasfemar contra Deus, pisar em crucifixos ou algo assim.
Se essas perturbações se tornam recorrentes, é razoável pensar
que são causadas por doenças com implicações psiquiátricas. Mas,
se surgem repentinamente e a pessoa aparenta autodomínio e sanidade
mental, então teremos razões para suspeitar de sejam tentações
diabólicas.
O
psiquiatra que tiver lido esta explicação, decerto, pensará que o
que foi descrito se deverá a um efeito de ação-reação. A tais
psiquiatras, queremos dizer que conhecemos perfeitamente esses
mecanismos do subconsciente, mas também lhes lembramos que o Demônio
também existe. E isto torna-se mais claro quando tal tentação
obsessiva, num belo dia, desaparece sem deixar vestígios. As
tentações demoníacas nunca são crônicas. E por veementes que
sejam, quando desaparecem não deixam a mais leve sequela na psiquê
que sofreu com elas.
23.
O que fazer diante da tentação?
Rejeitá-la
imediatamente! A tentação nada pode nos fazer se a rejeitamos; se
não dialogarmos com ela, ela é inofensiva. Pois, a partir do
momento em que dialogamos com ela, que ponderamos os prós e contras
do que ela nos sugere, que levamos em conta o que ela nos propõe,
desde esse instante, nossas forças se quebrantam, nossa resistência
se debilita. Uma vez que iniciado (desde que aceitemos) o diálogo
com a tentação, necessitaremos de muito mais força de vontade,
cada vez mais, para rejeitá-la.
Outra
coisa que nós, confessores, observamos, é que alguns penitentes
muito devotos se sentem oprimidos quando lhes ocorrem, de tempos em
tempos, certos pensamentos como tentações para cometer pecados
graves. A esse tipo de pessoas muito devotas e ou religiosas não se
explica como se lhes chegam tais pensamentos, sentindo-se elas muito
culpadas por eles, e impotentes diante deles. Tendo entendido o que
vem a ser uma espécie inteligível infundida por um demônio, se
compreende que o melhor modo de operar contra ela é ━ simplesmente
━, ignorá-la, fazer justamente o contrário do que tal tentação
nos propõe e se pôr a rezar. O desespero não servirá de nada. Se
não nos desesperamos, quem se desespera é o demônio!
O
demônio pode nos introduzir pensamentos, imagens e lembranças, mas
não pode entrar em nossa Vontade. Podemos ser tentados, mas, afinal,
fazemos o que queremos [e o que aceitamos fazer]. Nem mesmo todos os
poderes do Inferno podem forçar alguém a cometer nem sequer o menor
dos pecados!
24.
Pode usar o Demônio de alguma estratégia ao tentar-nos?
O
demônio é um ser inteligente, não uma força ou energia. Portanto,
temos de entender que a tentação é uma forma de forçar um
diálogo. Um diálogo entre o Tentador e a pessoa que a ele deve
resistir. Somente se a pessoa reluta em considerar a tentação é
que a tentação não deixa de ser apenas insistência por parte do
demônio, porém sem resposta de nossa parte.
Mas,
o demônio pode ficar ao nosso lado durante muito tempo,
analisar-nos, conhecer-nos e tentar-nos justamente através de nossos
pontos fracos. O demônio pode ser extraordinariamente pragmático.
Ou seja: sabe quais são suas possibilidades de sucesso e pode nos
tentar exatamente através daquilo em que sabe ser provável seu
sucesso. Se percebe que a pessoa não vai cair em pecado grave, pode
lhe tentar para que caia em pecado menos grave. Se vê que nem isso
conseguirá, pode tentá-la para que cometa apenas uma imperfeição,
não sendo esta nem mesmo pecado. E dentro do que consiste as
imperfeições, tentará somente através daquilo que considere
possível.
Vejamos
um exemplo: ele pode ver que tentar com a gula a um asceta pode
significar perda de tempo, mas sabe que pode ser ainda melhor se lhe
tenta a exceder-se no jejum. E se vê que por aí tem algum êxito,
tentará o asceta a que exagere em seu jejum justamente no que
favoreça sua soberba ou pior seja para sua saúde, etc.
Outro
exemplo: se lhe parece inútil tentar uma monja para que abandone
suas orações, pode ser que tente a monja a prolongar seu período
de orações em prejuízo de outras tarefas que ela também é
obrigada a executar. Em outras ocasiões, o demônio pode ver que,
mais que tentar a pecar, o melhor é fazer que a alma creia que não
deva seguir os conselhos de seu confessor, sendo ele um homem menos
espiritualizado que ela mesma. O demônio não tenta em vão e
debalde, mas analisa e ataca onde vê que tem alguma chance de
sucesso. E ele tem mais chances de sucesso onde o homem virtuoso acha
que ele [o demônio] tem menos chances.
Coloquei
exemplos de tentações a pessoas voltadas à oração e ascese,
porque o homem entregado ao vício é um homem sem proteção, sem a
proteção das virtudes. Sem a armadura da Virtude, seu espírito
deixa à mostra vários flancos desguarnecidos, expostos à ação
das tentações. Sem Deus que protegesse essas almas, qualquer delas
seria como palha para a fogueira de suas próprias paixões, cujas
brasas são constantemente avivadas pelas tentações demoníacas.
Por isso, pedimos ao rezar o Pai-Nosso para que nos livre do Mal.
Isso demonstra que, ainda que disponhamos da liberdade para resistir,
convém que roguemos ao Criador para que nos proteja.
Por
isso, também, o Senhor nos delegou um Anjo de Guarda (também
chamado “custódio”), para que as inspirações malignas sejam
contrapostas [e compensadas] por inspirações para o Bem.
Além
do mais, se alguém é tentado e reza, a tentação, cedo ou tarde,
desaparece. A realidade da tentação é incompatível com a prática
da oração. A oração, primeiramente, cria uma barreira para a
tentação, pois nela nossa Vontade e Inteligência se concentram no
Bem [ou seja, em Deus]. Se insistimos um pouco mais na oração, o
demônio acaba não suportando e foge.
25.
Pode Deus tentar?
“Que
ninguém, ao ser tentado, diga: ‘
Por
Deus sou tentado’; porque Deus não pode ser tentado pelo mal,
e
a ninguém tenta.” (Tg 1, 13)
Este
versículo nos ensina duas coisas:
1)
Deus não pode ser tentado. Afinal, o que pode oferecer a Deus a
tentação que Ele mesmo já não o tenha? Que dom, que prazer ou
gozo que Ele já não possua? Em Deus, a tentação, em termos
metafísicos, é impossível, pois esta não tem nada a Lhe
oferecer.
2)
Deus a ninguém tenta. Deus é bom e, por isso, nunca tenta ao Mal.
Deus só pode conduzir os seres ao Bem, nunca nos apresentando o Mal
como se fosse um bem ou nos induzindo ao erro.
Se
Deus não pode ser tentado, por que o Diabo pôde tentar a Jesus? Foi
feito Homem que Deus pôde ser tentado. Assim, também, como Deus,
é-lhe impossível sofrer por algo, mas somente como ser encarnado.
26.
Por que Deus permite a tentação?
Se
Deus não tenta, por que permite a tentação? Encontramos a resposta
para tal pergunta no versículo seguinte:
“Considerai
que é suma alegria, meus irmãos,
quando
passais por diversas provações,
sabendo
que a prova da vossa fé produz a paciência.”
(Tg
1, 2.3)
Sem
a tentação, não subsistiria essa constância na virtude que nos
permite resistir sempre mais à tentação sedutora. Em outras
palavras, há certas virtudes que jamais aflorariam sem que
pudéssemos ser submetidos à tentação. E mais: quanto mais dura
for a prova, mais brilhará a luz de tal virtude ao sobrepujar a essa
tentação.
Isto
nos leva à seguinte constatação: Deus poderia ter interditado os
demônios de modo a nunca interferir na história humana. Mas, Deus
sabia que, apesar de os demônios serem a causa dos males,
propiciariam ocasiões de grandes maravilhas ao darem vez a um maior
valor para as virtudes conquistadas. De certo modo, poderíamos
admitir que Deus aceitou a possibilidade de surgirem maiores Trevas
se, com isso, se obtivesse uma Luz mais pura e (verdadeiramente)
luminosa. Do contrário, bastaria uma simples ordem de Deus para que
nem sequer um só demônio pudesse ter entrado em contato com um ser
humano. Assim, se Deus permitiu tal contato, é porque dele poderiam
advir um Bem maior.
27.
O que é a morte eterna?
Um
espírito (assim como uma alma) é indestrutível. Não está sujeito
a fatalidades físicas, como as de atrito ou desgaste, nem pode ser
dividido. O espírito não pode morrer. Cometa os pecados que
cometer, seguirá existindo. Por mais que queira morrer, a Vida não
escapará dele. No entanto, o que queremos significar com as
expressões “pecado mortal”, “morte eterna” e similares, é
que a vida sobrenatural de um espírito ou alma é o que realmente
pode morrer.
O
pecado mortal acaba com a vida sobrenatural. O espírito segue
existindo, porém numa vida natural. A Vontade e a Inteligência, com
todas as suas potencialidades, continuam operando, porém já sem a
Vida da Graça. O espírito [sem vida sobrenatural] está para a
Graça como se fosse um cadáver. Tal palavra pode soar algo
exagerada, mas é mesmo precisa. O espírito que peca mortalmente é
como um cadáver inanimado, não mais vivificado pela graça
santificante. Desde então vive apenas para a natureza e por sua
natureza. Tal espírito, então, segue privado da supernatureza.
E
desde o momento em que a Graça tenha deixado de vivificar um
espírito, ocorre o mesmo que com um corpo físico não mais animado
por uma alma, começando a corrupção [putrefação, decomposição].
Assim como um corpo [físico] começa a se deteriorar, assim um
espírito começa a corromper-se à medida que sua Vontade vá
cedendo [ou melhor, renegando à Razão].
São
muitos os homens que vivem apenas para a natureza de seu ser,
negligenciando completamente sua supernatureza que Deus lhes
concederia com prazer. O nível de corrupção varia conforme a
pessoa. Mas, se pudéssemos “cutucar” os espíritos de alguns,
veríamos que são como cadáveres que exalam mau cheiro exatamente
como o de um cadáver decomposto já há muito tempo.
28.
Como é o processo que leva à Morte eterna?
“Cada
um é tentado por sua própria paixão,
vendo-se
a si mesmo arrastado e seduzido.
Depois,
a paixão, quando concebe, dá à luz ao pecado.
E
o pecado, quando chega ao seu final, traz a Morte.”
(Tg
1, 14.15)
O
apóstolo São Tiago, em dois versículos, com uma incrível
profundidade de princípios, descreve o processo que leva à Morte da
alma. O pecado não é algo que nasce por si mesmo, por acaso, nem
que de repente cai diante de nós sem que tenhamos alguma culpa, e
sim mediante um processo tal qual o descreveu o Apóstolo [São
Tiago].
A
tradução, a partir do grego, desses dois versículos deve ser
bastante cuidadosa para que não se perca os matizes que há nos
verbos.
O
processo descrito é como segue:
Paixões
↓
O
pecado é concebido e se desenvolve
↓
O
pecado “nasce”
↓
O
pecado mesmo começa a conceber
↓
“Nasce”
a Morte
A
imagem de uma mulher que, durante meses, carrega em seu ventre a um
bebê é perfeitamente aplicável [guardadas as devidas proporções
simbólicas] a uma pessoa que gesta em seu interior a iniquidade.
Certamente, o pecado se manifesta em um determinado momento, um
momento concreto, um segundo antes do qual não há qualquer pecado.
Porém, um segundo depois, já há o pecado manifesto. Mas, esse
pecado vem à luz somente em tal momento porque antes ele era gestado
no interior de seu “hospedeiro”. E, assim como é no mundo
animal, quanto mais longo o tempo de gestação de uma criatura,
maior ela será em “tamanho”. No mundo espiritual, quanto mais
vil o pecado, maior o tempo necessário de gestação interior para
que se manifeste com sua força total.
Daí,
temos podemos responder quando nos perguntam como uma certa pessoa
possa ter cometido tal ou qual barbaridade. Nenhuma barbárie moral
ocorre sem um processo [prévio], o qual se dá longe dos olhos dos
demais, mas que se desenvolve livremente no interior da pessoa.
O
Apóstolo São Tiago usa a expressão “dar à luz” porque,
realmente, o pecado, antes de ser “gestado”, precisa ter sido
“concebido”. A sedução e a Vontade atuam tais quais um
espermatozóide e um óvulo.
A
paixão tenta abrir caminho e penetrar na Vontade. Mas, se esta não
a recebe, a sedução torna-se “estéril”, nada produzindo.
Enquanto a Vontade se feche em si mesma, nem milhares ou milhões de
“espermatozóides” [de sedução] conseguirão penetrar no seio
[âmago] da Vontade.
Mas,
se a Vontade recebe a sedução, o pecado é, então, concebido.
Ainda assim, o pecado pode ser eliminado. Entretanto, se o pecado não
é eliminado, ele começa a reproduzir-se [tal qual um vírus]. O
pecado leva a outros pecados, se reproduz, aumenta em quantidade,
transmuta-se em piores faltas.
Se
o primeiro pecado esconde sua origem por um processo prévio, também
o pecado que [vem à luz e] deixa-se viver começa um novo processo
[de concepção e gestação], processo que leva à Morte da alma. E
a Morte da alma leva à Morte eterna.
A
alma invadida pelo pecado é como uma alma morta, pois não porta
vida sobrenatural dentro de si. E, se a alma morta decide permanecer
até o final neste estado de corrupção [putrefação], isso leva à
Morte eterna, à condenação.
Conhecer
como se dá esse processa nos leva a dar mais valor à ação
sobrenatural da Graça Divina que, em qualquer momento deste processo
[enquanto não tenha se dado à luz a Morte eterna], pode vivificar a
alma. O perdão de Deus não é apenas perdão, mas vivificação
[isto é, ação de tornar algo vivo ou revivê-lo]. E isso vale para
o pecado e para as paixões, só que ao contrário da Graça e das
virtudes. A Vida em Cristo é um processo, uma vida que se
desenvolve.
29.
Qual a diferença entre natural, preternatural e sobrenatural?
Natural
━ é a atuação segundo a Natureza. Subentende-se de que tratamos
aqui da Natureza do Universo material.
Preternatural
━ é a atuação que excede as leis da Natureza do Universo
material. Aquilo que é fruto da atuação de uma natureza angélica
ou demoníaca é preternatural. Essa palavra vem da expressão em
latim præter naturam, mais além da Natureza.
Sobrenatural
━ é a atuação que supera a de qualquer natureza jamais criada.
Esta forma de atuação é exclusiva de Deus.
***
A
natureza material pode realizar coisas surpreendentes, mas sempre
segundo as leis do Universo material [apenas]. Os demônios podem
fazer levitar um objeto no ar, mudar a forma de algo
instantaneamente, etc. Eles podem fazer coisas que excedem as
possibilidades do Universo material, mas nunca além das potências
de natureza angélica, pois não são onipotentes. Eles não podem
tudo nem sequer no mundo material. Deus, no entanto, pode criar um
ser vivo do nada, o que o demônio não pode.
Essas
diferenças valem também no que se refere às atuações em nossas
almas. Por exemplo, uma bela paisagem pode me fazer recordar da
beleza de Deus, o que é algo natural. Enquanto um anjo ou demônio
pode me enviar inspirações diretamente à minha mente, Deus vai
mais além, concedendo-me graças espirituais (de arrependimento, de
ação de graças, etc.) ao mais íntimo de meu espírito,
propiciando mudanças radicais no mesmo instante. Toda a atuação da
Graça é sobrenatural, a qual vem diretamente de Deus.
30.
Os demônios atraem maior castigo pelo Mal que fazem aos homens?
Já
dissemos que cada demônio é livre para fazer mais ou menos mal
contra os homens, parecendo lógico que isso lhes atraia um acréscimo
[ou não] em seu castigo. Particularmente, nunca pensei que o Juízo
Final sugerisse nada mais que uma declaração pública de sua
sentença. Porém, segundo o que aprendemos durantes os exorcismos,
parece que o Juízo Final será algo mais do que uma simples
declaração solene. Pelo que dizem os demônios, terão de prestar
contas do que terão feito aos homens ou contra Deus até o momento
em que eles sejam afastados definitivamente da humanidade e não
possam mais influir em seu destino. No Juízo Final, nenhum condenado
deixará de estar condenado, mas terão que dar conta do mal
inflingido no exercício de sua liberdade.
31.
É possível fazer um pacto com o Demônio?
As
pessoas se acostumaram a pensar que os pactos com demônios existem
apenas na literatura [ou cinema]. Enganam-se! Há pessoas que,
conscientemente e a despeito de todas as advertências, fazem pactos
com o Demônio e lhe entregam suas almas a fim de conseguir certas
coisas nesta mesma vida. A ideia de um pacto formal com o Demônio
surge, primeiramente, no século V, através de escritos de São
Jerônimo. Este padre da Igreja nos conta como um jovem, para ser
aceito por uma certa bela mulher, foi a um bruxo, o qual lhe exigiu,
como preço por seus serviços, renunciar a Cristo por [um contrato]
escrito. Tivemos, no século VI, a aparição de mais um pacto deste
tipo na lenda de Teófilo, o qual aceita ser um servo do Diabo e
firma um pacto formal. Esta lenda se difundiu pela Europa na Idade
Média.
É
possível um pacto com o Demônio? Claro que alguém pode firmar um
papel, mas não o levará para apresentá-lo ao Demônio, nem para
lhe entregar o papel nem para reconhecê-lo. Quando se faz um pacto
deste tipo, sempre espera-se que alguém apareça, mas é ele mesmo
que tem de escrever os termos [do contrato], e mesmo assim ninguém
aparece quando é firmado o pacto, já que ele mesmo permanece com o
papel nas mãos. Tudo parece, então, ser inútil para esse que
esperava que algo [extraordinário] acontecesse. Ainda assim, para
este que invoca o Diabo, coisas estranhas podem acontecer, como no
espiritismo. Mas, não obrigatoriamente acontecerão [tais
fenômenos]. A esta cena tão pouco [atraente e] teatral, tão
desanimadora para aquele que cria que ocorreria alguma aparição,
temos que dizer que:
1)
Firmar tal pacto não significa obter uma vida de riqueza, honras e
prazeres ilimitados. Conheci pessoalmente duas pessoas que fizeram um
pacto [com o Diabo] e, sinceramente, seus níveis de vida eram
piores, inclusive, que o meu. No âmbito carnal, o Diabo tampouco
parece ter sido generoso com ambos. Isso se deve ao fato de o Diabo
não ser Deus e não poder dar sempre o que quer,
2)
A alma pode arrepender-se sempre que quiser, bastando um simples ato
de sua Vontade nesse sentido. Arrependendo-se, o pacto torna-se
inócuo como um papel molhado pela chuva, sejam quais forem seus
termos precedentes. Inclusive, ainda que haja cláusula excludente de
arrependimento, a mesma se torna nula diante de uma Vontade
consciente. Deus, ainda que nos tenha dado a liberdade de fazer o que
quisermos, não nos permitiu usar a liberdade para renunciar à mesma
liberdade. Isso é válido também na eternidade: no Céu ou
Infernos, continuaremos a sermos livres [não tendo ultrapassado o
limite da rejeição da Graça, o que nos tornaria escravos de nosso
ódio]. Apenas ━ acrescento ━, no Céu já não desejaremos
pecar, nem no Inferno tenderemos a nos arrepender.
Muitos
pensam que o Diabo pode nos dar o triunfo nos negócios ou em nossa
profissão. Mas, a Razão pela qual o Diabo não pode conceder nem
sequer isso a seus servos é que o sucesso de uma empresa ou em uma
profissão depende de uma cadeia de muitas causas e fatores. O
Demônio pode apenas tentar. Assim, por exemplo, pode tentar a um
chefe para que escolha um tal empregado ao invés de um outro. Mas, a
tentação se pode superar. Portanto, nem essa coisa tão simples o
Demônio garanta, com certeza, que aconteça.
O
grande poder de um pacto com o Demônio é fazer uma pessoa pensar
que já está condenada [tendo pecado uma vez], faça o que fizer, de
bom ou mal. Dá trabalho fazer uma pessoa, que tenha feito tal trato,
entender que continua sendo tão livre como antes20. Mas, assim é.
32.
Pode o Demônio causar uma doença mental?
Se
o Diabo pode tentar, também pode fazê-lo contínua, intensa,
incansável, e tratar de conseguir, portanto, instilar uma obsessão,
fobia, depressão ou outras enfermidades. Se já dissemos que [o
Diabo] pode transmitir espécies inteligíveis, poderia fazê-lo com
tal frequência que perturbasse a vida diária da pessoa até que
estivesse desequilibrada [mentalmente]. Fazer isso, ele pode. Mas,
Deus impede sua livre atuação sobre nós. Toda ação do Demônio
sobre os seres humanos deve ser permitida por Deus.
A
resposta, para a pergunta de se o Demônio pode provocar doenças
mentais, é sim, se Deus o permite. Resposta essa que vale para tudo
mais. Inclusive se perguntarmos se podemos contrair uma perturbação
mental sem o dedo do Diabo. Sim, se Deus o permite, sim! Trata-se de
uma resposta que tem um caráter quase universal. No entanto, por
mais abrangente que seja ━ sendo que ela é adequada a quase todas
as situações ━, temo que não haja qualquer outra alternativa a
essa pergunta.
Tendo
nós conhecido o mecanismo interno pelo qual o Demônio nos tenta ━
a introdução de espécies inteligíveis em nossa inteligência,
memória e imaginação ━, este modus operandi pode também ser
usado de forma tão intermitente que venha a desequilibrar [a nível
psicossomático] a pessoa. Está ao alcance do Demônio tal
faculdade. A única coisa que pode embargá-lo nesse expediente é a
Vontade de Deus. Mas, vejamos: o impede sempre? Sem dúvidas que não!
Se Deus não impede sempre a atuação das causas naturais que
provocam a enfermidade [aliás, quase nunca], tampouco impedirá
sempre a atuação do Demônio. Assim sendo, tanto neste âmbito como
no campos das causas das patologias físicas e psíquicas, a atuação
do Demônio é excepcional. Toda enfermidade mental provém de causas
naturais, até que se prove o contrário.
Por
outro lado, se colocarmos, lado a lado, uma pessoa perturbada
mentalmente por causas naturais e outra por atuação demoníaca, não
teríamos condições de distinguir uma da outra, pois só veríamos
o efeito externo.
33.
O Demônio pode provocar doenças físicas?
Antes
de tudo, devemos esclarecer que as enfermidade advém sempre de
causas naturais. Pensar que as enfermidade têm sua origem no Mundo
dos Espíritos seria como querer voltar a um estágio pré-científico,
onde a Razão seria substituída pelo mito. Sendo assim, se os
demônios, tampouco pode-se descartar a possibilidade de que possam
causar danos neste campo [físico]. As regras gerais são como o
próprio adjetico indica: gerais. Mas, não é impossível que
ocorram casos especiais, por mais raros que possam ser. Normalmente,
do céu chove água. Porém, ainda que raramente, poderemos
presenciar uma chuva de meteoritos.
Assim,
de forma incomum e extraordinária, Deus pode permitir [sempre com um
propósito envolvendo a prova da alma] que o Demônio provoque uma
enfermidade em alguém. De fato, São Lucas cita expressamente o caso
de “uma mulher que, desde os dezoito anos de idade, padecia de uma
doença provocada por um espírito, e estava encurvada
[prosternada]”(Lc 13: 10-14). Ele [São Lucas] não diz que a
mulher estava endemoninhada, mas claramente afirma que um demônio
era a causa dessa enfermidade. O relato evangélico é categórico. A
este caso, podemos acrescentar as mortes dos maridos de Sara,
contadas no livro de Tobias, por obra do demônio Asmodeu (Tb 3).
Santa
Teresa de Lisieux escreveu um capítulo, relatando um caso parecido,
ao contar um período de sua vida:
“A
enfermidade que me acometeu provinha, certamente, da parte do
Demônio. Furioso por tua entrada no Carmelo [a de sua irmã], quis
vingar-se em mim de todo o prejuízo haveria de causar-lhe no futuro,
ainda que quase não me tenha feito sofrer; pude continuar em meus
estudos e ninguém precisou se preocupar comigo . (...) Isto durou
até a festa da Páscoa de 1883. (...) Ao me despir, me senti
invadida por um estranho tremor. Não saberia como descrever tão
insólita enfermidade. Hoje, estou convencida de que fora obra do
Demônio. (...) Quase sempre, parecia estar em estado de delírio,
pronunciando palavras sem sentido. (...) Com frequência, também
parecia estar desvanecida [em estado de ausência mental], sem poder
fazer o mínimo movimento. (...) Creio que o Demônio tenha recebido
algum poder exterior sobre mim, sem poder, no entanto, achegar-se à
minha alma ou espírito, a não ser para inspirar-me grandes temores
acerca de certas coisas.”
[“História
de uma alma”, cap. III]
34.
Como podemos saber se uma visão é originada em uma obsessão
demoníaca ou problema psiquiátrico?
O
tempo é a forma mais segura de aferir se uma visão [ou qualquer
outro relato sobrenatural] vem de um problema psiquiátrico ou da
ação de um demônio. Se uma visão, audição [de ruídos ou falas]
ou algo que pareça extraordinário for [decorrente de] uma
enfermidade mental, evoluirá inevitavelmente. As psicoses tendem a
se desenvolver como tais, não ficando estáveis, estagnadas. E, com
o tempo, acabam evoluindo, deixando tudo mais claro. Mas, quando
alguém relata um caso de visão, por exemplo, e pedem que um teólogo
o avalie, na maior parte das vezes isso é impossível. Mas, ao fim
de alguns meses, até os casos mais intricados tornam-se claros. E,
se permite-se que a enfermidade mental siga seu curso, após alguns
anos, o caso torna-se evidente como tal até aos familiares menos
afeitos ao assunto.
Para
dar um exemplo, se um penitente anônimo se aproxima do
confessionário e diz ao sacerdote que a Virgem lhe disse, de forma
clara, que o quer e que seja bom, o sacerdote não tem como saber se
está diante de uma pessoa que sofreu de uma alucinação ou que
realmente ouviu [a Virgem ou um demônio, em clariaudiência 21].
Provavelmente, nem o melhor teólogo do mundo poderia responder a
essa questão. Mas, se o penitente confessa isso durante um ano, a
coisa ficará cada vez mais clara, e em menos tempo. Pois, se o
penitente está desequilibrado mentalmente, sua enfermidade evoluirá
[ou seja, piorará] pouco a pouco e dirá que a “Virgem” lhe
revela mais e mais coisas, e estas cada vez mais esparsas. E, ao fim
de uns cinco anos, o normal é que a doença psiquiátrica se torne
evidente não somente ao confessor [já acostumado com a pessoa e com
o que ela diz], senão também aos familiares pois o caráter ilógico
e absurdo de suas alucinações deve se desenvolver, isso se
realmente se tratar de uma enfermidade mental. E as psicopatologias,
conforme avançam em gravidade, costumam desligar-se mais e mais das
leis da lógica.
35.
Podem os demônios provocar pesadelos?
Sim,
podem, ainda que não tenhamos como saber se um pesadelo ocorre por
causas naturais [traumas, medos pessoais, ansiedade, etc.] ou por
atuação demoníaca. Somente podemos suspeitar que tenha origem
demoníaca quando há outros indícios durante o estado de vigília22
que apontem nessa direção. Há casos em que psiquiatra algum
consegue supor uma causa razoável [do ponto de vista médico], nem
consciente nem subconsciente, para que uma pessoa, durante um mês ou
mais, sofra todas as noites com terrores noturnos que a façam
acordar encharcada em suor e gritando.
Esses
períodos de intensos pesadelos, por vezes, estão ligados a coisas
tais como ter-se realizado algum ritual esotérico ou iniciado uma
vida espiritual mais intensa. Eu aconselho, nestes casos, que se use
água benta e se peça, antes de ir dormir, que Deus o (a) proteja de
toda e qualquer influência diabólica durante a noite. Se, assim
fazendo, cessarem os pesadelos completamente, isto seria um indício
da origem de tais pesadelos.
36.
Podem os demônios ler nossos pensamentos?
Os
demônios nos podem tentar, mas não podem ler nossos pensamentos.
Ainda assim, devido à sua grande inteligência, podem conjecturar o
que pensamos23. Por serem criaturas mais inteligentes que nós,
deduzem muito mais coisas ━ e com maior segurança ━ necessitando
de menos sinais externos que nós para isso. Mas, sempre devemos
recordar que estão fora de nossa alma. Ainda que alguém se
dirigisse mentalmente a um santo, anjo ou demônio, eles nos escutam.
É por isso que a oração verbal e mental equivalem entre si. Isso
dá no mesmo que ordenar, mentalmente ou em voz alta, a um demônio
que se retire. Em diferentes casos de possessão, tenho observado que
o demônio atende a ordens emitidas mentalmente.
37.
Podem provocar desastres ou acidentes?
Se
os demônios fossem inteiramente livres para provocá-los, o mundo
todo, nos quatro cantos, sucumbiria ante um caos irreversível. Os
casos relatados [e documentados] de poltergeist são provas de que um
demônio pode provocar a levitação de algo no ar ou mover objetos.
Se pudessem retirar, à vontade, um parafuso de seu lugar, aviões,
automóveis e depósitos de combustíveis sofreriam contínuos
acidentes. Às vezes, bastaria deslocar de lugar a um cabo para
causar um curto-circuito e, portanto, um incêndio. O demônio move
coisas nos fenômenos dos poltergeists, mas depois constata-se que
não desloca tão facilmente um cabo ou um parafuso. Não pode
provocar acidentes à vontade. E, por quê? Porque Deus assim o
impede!24
O
mesmo vale para tempestades, furacões, terremotos e outros desastres
naturais. Temos, então, que afirmar categoricamente que os desastres
e acidentes ocorrem por causas naturais, o que não siginifica que,
de forma extraordinária, aqui ou ali, não possam engendrar este
tipo de fenõmenos se Deus o permitir. A Bíblia, no Apocalipse, nos
ensina que, no Fim dos tempos, Deus permitirá uma manifestação
mais livre [e evidente] dos poderes demoníacos. E, assim, em
Apocalipse 13, 13-14, fala-se desses prodígios. Mas, entretanto, não
devemos pensar que os desastres ou acidentes tenham sua origem na
ação demoníaca, a não ser que tenhamos indícios suficientes para
pensar dessa forma.
Em
certa ocasião, pus-me a orar por uma senhora que sofria de uma
influência demoníaca. Alguns minutos depois, começou a chover.
Seguinte à chuva, veio o granizo, e cada vez mais intenso.
Finalmente, um vendaval próprio de uma tempestade começou a
bater-se contra a Igreja [em que eu estava]. Os ventos sobrevieram em
tal intensidade que tive de interromper a oração. O estrondo dos
ventos não somente me impediam de ouvir a oração, mas também que
para falarmos um ao lado do outro [o padre ao lado da penitente]
tínhamos quase que gritarmos. Tudo começou a ranger, o templo
inteiro rangia como um barco de madeira em meio aos vagalhões de
alto mar. Repentinamente, o mesmo teto da Igreja cedeu e ergueu-se em
um de seus extremos. Pusemo-nos a rezar para que não fosse arrancado
o teto inteiro. Aquela cena, com os ventos agitando furiosamente as
toalhas de sobre o Altar ━ os quais não saíram voando ━, os
ladrilhos caindo por sobre o presbitério desde a parte mais alta do
teto da Igreja e os raios trovejando initerruptamente formaram em
minha mente uma lembrança tremenda e impossível de esquecer.
Pois
bem, aqui temos um episódio em que seria razoável pensar que houve
uma relação entre a oração sobre aquela pessoa e o que ocorreu
logo após o início da mesma oração. Posso dizer que,
curiosamente, o departamento de meteorologia mais próximo não
detectou nenhum vento anormal, o que fez com que a agência de
seguros se recusasse, prontamente, a arcar com os custos decorrentes
dos danos ao Templo.
38.
Podem os demônios operar milagres?
“Achegaram-se,
pois, Moisés e Aarão ao Faraó e fizeram como havia ordenado
Yahveh, lançando Aarão seu cajado à frente do Faraó e seus servos
e [o cajado] se transformou em serpente. Então, o faraó chamou
também aos seus sábios e magos, e assim eles, os adivinhos do
Egito, fizeram o mesmo com seus sortilégios. Cada um lançou seu
cajado, transformando-se cada um em serpente.” (Êxodo 7, 10-12)
Na
Idade Média, quando alguém falava aos teólogos e citava este
texto, tudo ficava claro. Hoje em dia, quando alguém oferece um
texto da Bíblia aos teólogos, tem-se que demonstrar depois que o
texto realmente quer dizer o que diz. A autoridade da Bíblia nunca
antes foi tão contestada pelos teólogos. Em poucos temas, como a
demonologia, se percebe mais claro que o que diz a Bíblia é levado
à missa. Quando as Sagradas Escrituras versam sobre demonologia, não
há motivos para procurar sentidos raros ou alternativos, quase
sempre deturpados.
A
citação supracitada do livro do Êxodo mostra que os demônios
podem realizar coisas extraordinárias que extrapolam as leis
naturais daquilo que conhecemos, não obstante, lhes seja vedado
operar fora de sua natureza angélica.
O
que operam, devem-no fazer segundo as leis da natureza [isto é, de
sua própria natureza]. Somente Deus pode operar em níveis mais além
dessas leis: pode criar algo, devolver a visão a um cego por um
simples ato de Sua Vontade, pode ressuscitar um corpo em
decomposição. Um demônio poderá curar a cegueira de alguém
somente com o poder [de Deus] e através das leis naturais. É o
mesmo que dizer que um médico pode curar certas doenças com seu
conhecimento e os meios de que disponha, e outras doenças não. Do
mesmo modo, por exemplo, pode [o Demônio] curar uma pequena
enfermidade em certos casos, mas não em todos. Mas, jamais poderá
devolver a vida a um tecido [orgânico] que está morto, mas pode,
sim, acelerar processos, extirpar algo, etc.
E
o que vale para esta matéria, vale para todos os fenômenos
análogos. Pode suspender algo no ar, conceder uma grande força
física [incomum] a uma pessoa em um certo momento, provocar uma
tempestade. mas não pode tornar uma pessoa imortal, pois as leis
biológicas seguem seu curso. Não podem transformar água em vinho,
mas pode retirar a água de um recipiente fechado e substituí-la por
vinho. Não pode fazer surgir, do nada, um olho na cavidade ocular
vazia da face, mas poderia retirar um cálculo dos rins. Cada demônio
opera segundo o poder de sua natureza, sem poder exorbitar os limites
que lhes são impostos pelas leis que governam o Cosmo. Deus é o
único Ser Onipotente, cujo único limite está além do impossível.
Assim, nem sequer Deus poderia criar um círculo quadrado, nem
tampouco pecar, esquecer algo ou criar outro que fosse Deus.
O
exemplo dado pelo fato de o Faraó e sua corte se manterem
irredutíveis, até o limite, em impedir a partida do povo hebreu,
explica por que os demônios podem fazer coisas extraordinárias, não
obstante serem eles testemunhas dos prodígios operados por Deus.
Sim, pois o Faraó via com seus próprios olhos que seus magos também
faziam coisas extraordinárias. Por isso, pensou que, com a ajuda de
todos os seus deuses, poderia lutar contra o “deus desconhecido”
dos hebreus. Não percebeu que o “deus desconhecido” dos hebreus
não era [somente mais] um deus, mas Deus.
Da
mesma forma que os magos do faraó transformaram seus cajados em
serpentes (Ex 7, 12), também fizeram aparecer multidões de rãs (Ex
8, 3). Assim, Deus, ao fim da História, permitirá que os demônios
operem os mesmos prodígios, agora descritos no Apocalipse. Como
relata o último livro sagrado da Bíblia, no Fim dos tempos,
surgirão pessoas que operarão prodígios fundados no poder dos
demônios.
39.
Como podemos saber que algo foi provocado pelo Demônio?
O
mundo material é regido por leis e causas naturais. Porém, às
vezes, nos perguntam se tal enfermidade, desastre, acidente, foi
causado pelo demônio. Para responder a essa questão, formularemos
uma máxima:
Nada
tem sua causa na ação do Demônio
até
que se prove o contrário.
Esta
regra não é perfeita, já que, por exemplo, ainda que eu creia que
uma tentação possa ter origem em mim mesmo, pode proceder do
Demônio sem que eu sequer suspeite. Isso também vale para qualquer
evento cujos efeitos aparentes possam ser de origem demoníaca. No
entanto, há mais benefícios em seguir esta regra de forma rígida
do que se deixar levar por uma contínua suspeita [que poderá
tornar-se em paranoia]. Categoricamente, temos de afirmar que o que é
natural tem uma origem também natural.
Um
cientista só poderá aceder a teorias não físicas se – e somente
se, - não encontrar explicação nas leis do mundo físico. Também
é pouco científica a atitude de tentar, a qualquer custo, explicar
fatos preternaturais sob as leis deste mundo [material]. Por exemplo:
um fato em que [a imagem de] uma Virgem de gesso chore sangue humano
(como em Civitavecchia, Itália) é um fato preternatural. Se um
cientista se obstina em explicar isso com razões naturais, a única
coisa que consegue provar é quão pouco racional ele pode ser. Ou
seja, está tentando trazendo a Razão a seu próprio serviço, como
meio para chegar a uma “verdade” pela qual já tenha se decidido
de antemão. Um cientista que usa a Razão de forma soberba já não
é cientista, mas um espécie de bruxo ou mago da Razão [o que
equivale a acusá-lo de manipulador arbitrário de argumentos]. E
assim, diante de certos fatos, algumas pessoas, apesar de seus
diplomas acadêmicos, agem de forma tão irracional como o fazem os
oficiantes de vudu dançando em redor do fogo. Encenam espetáculos
bizarros em torno da Razão, mas suas decisões, tomadas de antemão,
é que guiam suas mentes zumbis em torno do fogo da Razão.
Normalmente,
quando um fato é reconhecidamente preternatural e não lhe cabe
nenhuma conjectura alternativa como explicação, por pouco razoável
que seja, esta casta de “cientistas” teimosos acabam por tirar da
manga uma solução que vale para tudo [uma receita generalista]: os
poderes da mente podem operar milagres25.
Cientistas
não creem em milagres e, portanto, se lhes disseres que vistes
[milagres] com teus próprios olhos, serás imediatamente catalogado
como alucinado. Porém, se o milagre ocorre diante dos olhos deles, a
resposta é rápida: resultado dos poderes da mente. Ali, por esses
poderes, todos os fenômenos podem ser explicados. Não importa se o
fenômenos seja uma manifestação de estigmas26, a liquidificação
de sangue coagulado {caso do sangue de São Jerônimo e São
Pantaleão), não comer nada durante anos (caso de Teresa Neumann,
austríaca), etc.
Os
escribas e fariseus menosprezaram os milagres de Jesus porque
encontraram uma desculpa perfeita para tranquilizarem suas
consciências: “Ele os opera mediante o poder do Demônio”,
diziam. Hoje em dia, essa desculpa soaria inadequada, e até mesmo
ridícula, sobretudo se um deles for ateu. Daí é que apelam para o
reino indefinível dos poderes da mente, as “forças do Universo”
ou à frase “só conhecemos 5% do que nos circunda”, mais
elegante e sutil.
40.
O Demônio pode causar azar?
Esta
é uma das perguntas mais frequentes feitas a sacerdotes por pessoas
que creem estar sendo [ou já terem sido] alvos de trabalhos de
magia. A primeira coisa que deveríamos contestar é que, de uma
perspectiva cristã, falar de boa ou má sorte é uma forma
superficial de tratar as coisas. Digo superficial porque, ainda que
seja admissível na forma de expressão, é incorreta sob o prisma
teológico, mesmo o mais progressista. O que se considera, pelos
efeitos aparentes, como má sorte deve ser considerado como prova de
maldição e como boa sorte se vier de efeitos benéficos.
Nesse
ponto de vista, Deus permitiria o Mal através de todos os tipos de
causas secundárias, e entre elas estaria a atuação demoníaca. No
entanto, como se o Demônio está envolvido numa série de maus
sucessos que podem acometer nossas vidas? Não há forma possível,
pois, ainda que real, é uma causa invisível. Somente quando os
eventos são definitivamente considerados inexplicáveis, bem como
pela forma como que ocorrem ou pela incoerência de sua sequência, é
que seria admissível cogitar a atuação demoníaca como causa.
Assim,
o sacerdote deve contestar, dizendo que não há forma de saber que,
por detrás dos fatos relatados [como preternaturais], está ou não
o Demônio. Porém, se a influência do Diabo estiver na causa dessas
ocorrências, o modo de nos opormos à tal influência é a oração.
A oração, diga-se, é o que atrairá as bênçãos Divinas
[incluindo a proteção contra o Demônio] e afastará esse ser
maligno. A segunda pergunta mais frequente, nesse caso, é quais
orações realizar, em que quantidade e de que modo. A réplica que
lhes deixo é: quanto mais orardes, mais atrairás as bênçãos
divinas para você e os seus.
As
pessoas buscam formas complicadas [de estilos curiosos,
sensacionalistas] e quase “mágicos” de trazer de volta a Paz. Há
de se explicar a essas pessoas que Deus é Deus de simplicidade!
41.
Que é malefício?
Malefício
é a operação que se realiza com a ajuda dos demônios visando o
mal de uma outra pessoa [ou de um grupo de pessoas]. Há malefícios
para matar, provocar possessão [também conhecidos como obsessões],
para prejudicar um empreendimento, fazer adoecer, etc. Como já foi
dito acima, os malefícios só logram efeito [desejado] se Deus o
permite. Quanto mais uma pessoa ore, mais protegida estará contra
influências [maléficas].
O
ritual anterior de exorcismos dizia em sua Introdução: “Ordene
que o Demônio lhe diga se está naquele corpo [o do possesso] por
alguma operação mágica, sinais ou instrumentos maléficos. Se há
alguns desses objetos, e o possesso os tenha comido, que os vomite!
Se [os objetos encantados ou maléficos] estão em algum local fora
do corpo, que [o demônio] os revele! Tão logo sejam encontrados
[tais objetos], que sejam incinerados completamente!”
Se
o possesso vomitar um objeto maléfico, este deve ser incinerado
[imediatamente]. É recomendável que o exorcista, no entanto, não o
toque diretamente com suas mãos; se tiver que tocá-lo, convém que
reze enquanto faça isso, lavando com água benta suas mãos. Do
contrário, um objeto desses pode provocar-lhe problemas de saúde
[ou de outra ordem] durante algum tempo.
42.
O malefício pode conter real poder?
Muita
gente se pergunta se o malefício é eficaz [em seu objetivo
maléfico], o qual muitos chamam de mau olhado, nada tendo a ver nem
com o olho nem com a visão.
A
primeira coisa a ser dita é que aquele que realiza um malefício
[bruxo, feiticeiro, sacerdotes de cultos animistas, etc.] e quem o
encomenda são os primeiros a serem prejudicados pelo Demônio. Sem
dúvidas, serão esses prejudicados, ou com algum tipo de influência
diabólica ou por meio de enfermidades [físicas ou mentais]. Nunca
se invoca o Demônio em vão [ou seja, de graça].
Depois,
podemos nos questionar se o malefício pode fazer mal contra aquele a
quem foi dirigido. Isso, pois, depende da Vontade de Deus, o que
equivale a fatos como acidentes, enfermidade ou desgraça. Deus
permite que, em nossa existência sobre a Terra, sobrevenha bens e
males, pois nossa mesma Vida é uma prova antes do Juízo [Final]. É
claro que a pessoa que ora regularmente e vive na Graça de Deus [em
intimidade espiritual com a Divindade] está protegida por Deus.
Quanto mais oramos e temos vida espiritual ativa, mais estaremos
protegidos.
Como
poderemos saber se alguém está sendo vítima de um malefício? Não
há como saber, já que a ação do Demônio, neste caso, é
invisível. É seguro afirmar [que alguém é vítima de um
malefício] apenas quando há uma possessão ou influência demoníaca
na pessoa cujos sinais indicativos são patentes e inconfundíveis ao
sacerdote [católico, claro!]. Também é possível deduzir que um
mal é fruto de um malefício quando o mesmo mal vem acompanhado de
eventos preternaturais malignos. Porém, a não ser que haja efeitos
aparentes que denotem uma causa demoníaca, não se poderá jamais
saber se algo provém ou não de causas naturais.
43.
O que fazer em caso de malefício?
O
que fazer se alguém demonstra sinais suspeitos de um malefício
contra si? Como disse no item anterior, quase nunca teremos como
assegurar que há presença de malefício, nem mesmo um especialista
o teria e menos ainda uma pessoa leiga no assunto. Mas, se um
malefício tiver sido praticado, o único modo de destruí-lo será
fazer justamente o contrário.
Quero
dizer: se uma pessoa invocou o Demônio para fazer o mal, se faz
necessário que a vítima [desse malefício] invoque a Deus para que
lhe proteja, ajude e abençoe. O Bem sempre prevalecerá sobre o Mal.
Às
pessoas que acorrem à minha paróquia alegando serem vítimas de
malefícios, lhes digo que, exceto em alguns casos, é impossível
comprovar a autoria demoníaca de um malefício. Mas, se sofrem
realmente de um malefício, a única medicina válida e medicamento
eficaz contra isso consistem nos procedimentos a seguir:
Meditar
e rezar, diariamente, um mistério do Santo Rosário;
Ler
por, pelo menos, cinco minutos o Evangelho;
Falar
com Deus por alguns instantes;
Ir
à Santa Missa (todos os domingos ou ainda mais frequentemente);
Afixar
em casa um crucifixo benzido;
Ter
em casa uma imagem benta da Virgem Maria;
Benzer-se
uma vez ao dia com água benta.
Obrando
estas coisas, o mal de que sofrem, se for de origem demoníaca,
recuará e se diluirá. Mas, se não diminuir em nada, isso seria
indício de que o mal sofrido não é causado por um malefício. Se o
sacerdote for exorcista, poderá rezar sobre a pessoa para ver se
nela há algum sinal de influência maligna. No caso de o malefício
ter produzido uma influência, o sacerdote poderá rezar a oração
de libertação27. Mas, em outras ocasiões, o Demônio pode ter
provocado um mal (por exemplo, uma enfermidade), e ter ido embora
[deixado a vítima]. Ou seja, se por um malefício alguém tiver um
problema de saúde, não vendo o exorcista nela nenhum sinal de
presença demoníaca, então tal enfermidade é como qualquer outro
problema comum de saúde e sua cura virá [ou não, se for incurável]
da Medicina. Pois, em tais casos, o demônio veio até a pessoa, lhe
infligiu o mal e se foi. Assim, deve-se aplicar causas naturais para
remediar o mal provocado, nada mais.
44.
O que é um feitiço?
O
feitiço, diferente do malefício, é a operação que se realiza com
a ajuda dos demônios para obter algo positivo para quem o impetra28.
Se a prática do malefício busca causar mal a alguém, a do feitiço,
por sua vez, busca algo proveito de quem a engendra, a saber: favores
amorosos de alguém em particular, sucesso financeiro, progresso na
carreira profissional, etc. Como é lógico, o Demônio não é
onipotente; pode apenas tentar as pessoas. Daí, podemos inferir que,
se ele tem condições de influir em algo, será mediante a tentação.
O feitiço acaba não obtendo o efeito desejado para quem o pratica,
muito pelo contrário. E, mais ainda, termina por provocar possessão
ou tipos similares de influências negativas em quem o realiza ou
encomenda e, às vezes, na vítima de tal feitiço29.
Quando
exorciza-se alguém e achamos objetos usados em malefício ou feitiço
contra essa pessoa, devemos destruir tais objetos. Ainda assim, não
encontrar o objeto não inutiliza a oração, destruindo esta, pela
virtude que lhe é própria, as influências demoníacas, manifestas
ou não.
Contra
os feitiços, aplique-se os mesmos remédios que os recomendados
contra os malefícios, pois, definitivamente, é certo que consistem
em atuações diabólicas.
45.
Importa o modo como são operados os malefícios ou feitiços?
Não!
Dá no mesmo usar vísceras de animais ou pelos da vítima, bem como
é indiferente se aquele que opera o faz com uma boneca de cera ou
marca com giz um pentáculo cercado de velas no solo. É indiferente
usar esses ou aqueles materiais, umas ou outras conjurações. O que
realmente torna eficaz tal prática é a invocação que se faça ao
demônio. A forma com que se faz tal invocação é irrelevante.
Obviamente,
o demônio tem interesse em fazer seus servidores crerem que é
importante observar o rigor com relação aos materiais usados e os
ritos. Pois, isso faz as pessoas pensarem que dominam essas forças.
Através de seus ritos, os bruxos mantém a ilusão de que estão no
domínio da situação.
O
que foi dito acima acerca dos malefícios e feitiços vale também
para os exorcismos, só que inversamente. Dá no mesmo os materiais
ou ritos concretos utilizados, mas é sumamente importante a Fé em
Deus. Pode-se exorcizar ao demônio apenas munido com o Nome de
Cristo e a Fé. Há exorcistas que dão demasiada importância aos
rituais e materiais usados e à forma com que realizam os exorcismos
[muitas vezes, impedindo a Luz sobrenatural de se manifestar como
Providência Divina].
De
qualquer forma, ainda que o sacerdote vá armado com o Nome de
Cristo, a oração fará com que o Demônio revele ao exorcista quais
coisas lhe atormentam mais que outras.
Adendo:
Durante muitos anos, sustentei a posição descrita acima [sobre a
importância ou indiferença do uso de materiais e rituais], pois me
parecia a mais racional e a ela me apeguei com unhas e dentes. No
entanto, minha experiência em exorcismos ia desbancando, pouco a
pouco, a tese descrita no capítulo 45, em tantos casos e de um modo
tão evidente, que já não penso da mesma forma. Agora, sim, creio
que há algum tipo de relação desconhecida entre determinados
objetos materiais e o espírito. Ou seja: ter ou não ter algo do
corpo (unhas, pelos, sangue da menstruação, etc.) da pessoa contra
a qual se quer fazer um malefício não é indiferente. [É algo
relevante, portanto.] Também tem relevância saber se incinera-se ou
não o objeto com o qual se obra o malefício, ao ser encontrado.
E,
se essa questão é relevante para o malefício, também o é para o
feitiço. Ou seja: em um exorcismo, o que é essencial é a Fé, mas
deve-se considerar também o material que será usado para exorcizar,
e darei exemplos a seguir. Em dado momento [num ritual de exorcismo
em que participei], o que Deus nos revelara (através do possesso)
foi que deveríamos aplicar sobre o possesso cinza da Quarta-feira de
Cinzas adicionada do [óleo de unção do] Santo Crisma, justamente o
que pôs fim a uma possessão que, de outra forma, teria se
prolongado por muitos dias mais. Em outros casos, fazer
sinais-da-cruz em uma parte determinada do corpo do possesso pode
abreviar um exorcismo em muitas horas.
A
tese de que [no exorcismo] a única coisa que importa é a Fé, a
despeito dos materiais e da forma com que é realizado é bela,
simples e que não inspira inconveniências. No entanto, a ideia de
que o material tenha relevância, para exorcizar ou fazer malefícios,
não significa que cairemos na superstição, mas, simplesmente,
reconhecer que entre os materiais utilizados e o espírito existem
relações muito mais complexas do que imaginamos, todas elas regidas
não pela irracionalidade, mas por uma racionalidade que nos supera
[isto é, que supera nossa capacidade de compreensão racional].
46.
Qual a diferença entre magia “branca” e magia “negra”?
A
magia “branca” é a que se pratica para lograr um bem30 e a magia
“negra”, por extensão, é aquela pela qual se busca causar mal a
alguém. Ambas as magias, em si mesmas, são inócuas [ineficazes].
E, se alguma vez têm algum nível de eficácia é por intervenção
do Demônio. Nenhuma pessoa tem poderes mágicos, estando o Demônio
sempre por trás do que ela obtenha, ainda que muitos destes mesmos
videntes, pais-de-santo, magos e/ou bruxos não o saibam. E eles
mesmos, se invocam este tipo de forças, acabam por ser possuídos.
47.
Os magos podem adivinhar o futuro por intervenção do Demônios?
Sem
dúvidas, não! E lhes digo isso, definitivamente, por duas razões.
Em primeiro lugar: os demônios não conhecem tudo, mas apenas o que
podem deduzir, não vendo eles o futuro. Em segundo: os demônios
buscam nosso mal e, ainda que pudessem conhecer algum fato, não nos
ajudaria revelando-nos tal fato. Ainda assim, excepcionalmente, podem
revelar alguma coisa concreta do futuro para que a pessoa torne-se
assídua das consultas destes “videntes” ou similares.
Nunca
qualquer cristão, sob qualquer pretexto, deve consultar este tipo de
pessoas. A consulta a um mago, vidente ou necromante constitui sempre
um pecado grave. E, ainda que este tipo de pessoas afirmem possuir
poderes de vidência, nunca um sacerdote deverá recomendar a um
suposto possesso para que se dirijam a elas para verificar se há ou
não possessão. O que o sacerdote não diagnostique com seu
conhecimento, não deve tentar suprir com a falsa ciência destes
alegados “videntes.
48.
O Demônio intervém no horóscopo, tarô e outras formas de tentar
adivinhar o futuro?
A
princípio, o Demônio só intervém se é invocado. Essas formas de
tentar adivinhar o futuro nas quais não se invoca forças ocultas,
nem a seres espirituais desconhecidos, não são demoníacas. São
práticas supersticiosas, mas não demoníacas. Se bem que os que
praticam tais superstições sentirão sempre mais a tentação de
invocar tais forças e seres desconhecidos.
Não
é necessário que se diga que, se não é possível prever o futuro
nem mediante a invocação de demônios, tampouco seria isso possível
por essas práticas, tais como astrologia, cartomancia, etc. Os
mesmos praticantes dessas trapaças são provas vivas de que por elas
não se pode obter quaisquer benefícios. Os únicos que acabam se
beneficiando de tais práticas divinatórias são os charlatães
profissionais, esses mesmos os primeiros a não crerem nelas e que
sabem modular suas predições para não perderem os dedos31.
49.
Pode o Demônio inspirar falsas visões a um místico?
As
naturezas angélicas têm poder para inspirar visões e vozes a
qualquer mente humana. No entanto, Deus, para evitar o desajuste que
este tipo de influências produziria nas almas, caso ocorressem com
frequência, praticamente nunca consente que aconteçam. Só as
permite em raríssimas ocasiões e quando a pessoa detém meios de
descobrir a verdade. Desde logo, se não fosse o Altíssimo conter a
atuação dos demônios, estes se apresentariam continuamente como
anjos ou santos. Há casos em que, inclusive, têm aparecido com as
feições de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No
caso realmente excepcional de que tenha havido uma revelação
mística a uma alma, e ao diretor espiritual se apresente a dúvida
de se há ou não interferência do demônio, há dois critérios que
se podem usar para tentar a verdade:
1.
Seguir toda inspiração que nos leve ao Bem como se procedera de
Deus;
2.
Obedecer ao diretor espiritual acima de toda revelação.
Se
uma revelação, mensagem, aparição, ou que mais possa ser,
verdadeira ou falsa, produto da imaginação, da atuação do Demônio
ou vinda de Deus, nos leva a fazer o Bem (ou seja, nos incita a obras
de caridade, oração, de sacrifício, etc.) então sigamo-las como
se viesse diretamente de Deus32. Pois, na pior das hipóteses, se o
Demônio é quem nos está pregando a prática do Bem, por que não
lhe darmos ouvidos? Se o Demônio nos exorta ao bom caminho,
haveremos de rejeitar tal conselho por ser mau o conselheiro? Por
meio dessa linha de raciocínio, findam as dúvidas desnecessárias e
se evita a perda de tempo quando tentamos mapear a origem do que nos
chega à alma.
Acima
de tudo, temos de antepor a ordem do confessor ou diretor espiritual
a estas supostas revelações. Não importa quão bom ou nobre seja o
que nos inspira tal revelação, devendo nós submetermos tudo à
obediência devida ao confessor. Pois, também o que provenha
diretamente de Deus deve ser filtrado nos caminhos da obediência aos
legítimos pastores. A recepção de revelações é um dom menor se
comparada à obediência33.
Sendo
assim, se tais revelações provierem da parte do Demônio, de duas,
uma: ou entrarão em conflito com a obediência ao confessor ou logo
deixarão de conduzir [a pessoa que é inspirada] ao Bem, incitando
ao Mal de vez em quando. O Demônio não resiste muito tempo
inspirando bons conselhos. Do contrário, se a revelação é [ou
provém] de Deus, não haverá conflito entre a revelação e o
diretor espiritual, pois a obediência ao diretor espiritual é
obediência a Deus através desse clérigo.
A
obediência a uma revelação será sempre obediência a uma suposta
revelação, enquanto a obediência ao confessor é algo santo e
seguro.
Aquele
que está sob direção [do confessor ou diretor espiritual] deve
recordar a máxima que nos diz para obedecer sempre enquanto não for
pecado. O místico não somente não se libera da obediência como
ainda deve estar mais sujeito a ela. E por quê? Para evitar o perigo
sempre constante, que todo místico corre, de cair no pecado da
soberba34. Por isso, ele deve desconfiar mais de seus próprios
julgamentos, submeter-se e ser humilde diante de um homem mais
pecador que ele. Do contrário, pode suceder com ele o que ocorreu
com o Diabo que, enamorado de si mesmo, corrompeu todos os dons
supremos que havia recebido.
E
digo isto com especial conhecimento de causa, pois, há muitos anos
atrás, fui escolhido como diretor espiritual de uma alma que
dispunha de vários dons [realmente] extraordinários. A veracidade
desses dons pude atestar em várias ocasiões, sem que permanecesse
de pé nenhuma dúvida. Mas, pouco a pouco, aquela pessoa começou a
deixar de atender às minhas indicações. Ela considerava que estava
tão avançada em perfeição que, incluso, poderia ser guiada
diretamente pelo Espírito Santo. Ao constatar eu que uma terrível
soberba surgia no horizonte, ainda que estivesse longe, converti meus
conselhos à pessoa em ordens. Mas, a pessoa optou por seguir suas
próprias inspirações mais do que o que eu lhe propunha. Assim,
paulatinamente, ao longo dos anos que se seguiram, pude assistir no
camarote, por assim dizer, como se inflava de cada vez mais soberba
[ou seja, orgulho]. Finalmente, lhe dei um ultimato: ou me obedecia
[como confessor] ou eu deixaria de ser seu diretor espiritual. Optou
por seguir seu próprio caminho (o do “Espírito Santo”, segundo
ela). Um ano depois, me informaram alguns amigos que a pessoa havia
caído em pecados mais graves. Depois de sucumbir a não poucos
pecados, havia perdido seus dons, aqueles que eu havia conhecido
reais e impressionantes. Terríveis foram estes fatos, que sempre me
recordarão que, no caminho que nos leva à santidade, há muitos
outros que caem na vala [comum dos orgulhosos] e dos quais nunca
conheceremos os nomes.
50.
Os demônios podem provocar estigmas?
Sim,
o Demônio pode provocar estigmas35! Eu relutei em crer nisso, apesar
de o Cardeal Bona36 afirmar que tal fato “já fora comprovado por
exemplos indiscutíveis” (cf, Discret. Spir. 7, 11) e que teria
havido testemunhas destes eventos no caso das possessas de Loudun37.
E eu continuava, não obstante, a relutar em crer porque considerava
que os estigmas fossem de caráter eminentemente externo que supunham
uma permissão divina a respeito da pessoa que, porventura, os
carregasse. Quero dizer: outros fenômenos místicos são ocultos e
legados para o bem da pessoa que os porta, mas a estigmatização se
dá essencialmente para os demais. Por isso, são marcas externas. E
são – acreditava eu – uma confirmação divina da santidade da
pessoa que os carrega. E, assim, São Paulo afirma: “Desde agora
ninguém me inquiete; porque trago no meu corpo as marcas de Cristo”
(Gálatas 6, 17). Deste versículo, cabem várias interpretações,
todas plausíveis. Mas, se estiverem se referindo à estigmatização,
então a primeira impressão é que trata de uma manifestação do
favor divino, impressão que brota naturalmente aos olhos dos que
conhecem de perto tal fenômeno. Mas, ainda que seja desta forma,
certo é que tempos depois conheci (não pessoalmente, mas ao
assistir vídeos) um caso de um pseudo-messias38 que padecia de
hemorragias em certas partes de seu corpo. Não eram propriamente
estigmas, senão a pele que sangrava [isto é, da pele brotava
sangue].
O
que podemos concluir disto tudo? Quem sabe, a grande lição que
tiramos do fato de que esta anedota possa ocorrer é que o mesmo Deus
que nos concede os sinais para chegar ao conhecimento da Verdade, nos
deixou também a Inteligência para poder discernir entre tais
sinais. Deus, origem da Inteligência, achou por bem nos propor
enigmas deste tipo para que os resolvamos.
Figura
2: Pe. Pio de Pietrelcina, Santo, e um de seus estigmas.
De
qualquer forma, a origem de um caso de estigmatização, como de
algum outro fenômeno místico, será deduzida a partir de suas
consequências na vida da pessoa que o vivencia. “Por seus frutos,
os conhecereis”. Os frutos malignos são a soberba, a
desobediência, enfim, uma casta de pecados dos mais simples aos mais
graves. Os frutos na alma tocada por Deus são a humildade, a
obediência, a vida abnegada, etc. O fruto bom sempre será
consistirá em uma virtude. Volto a repetir que o fato de que os
estigmas podem ser provocados pelos demônios é muito incomum e
acidental. Porém, a lição que se extrai dele é muito importante
para qualquer área de estudo da Fé: pode-se falsificar tudo, menos
a virtude. Os sinais, as análises dos teólogos, as boas razões e
intenções, todas essas coisas são passíveis de serem manipuladas
e distorcidas. A única coisa que não se pode fraudar durante 24
horas por dia, 365 dias por ano, é a virtude.
51.
Com que forma os demônios se apresentam à visão dos homens?
Os
demônios não possuem uma forma visível determinada, sua forma é
imaterial. Portanto, se se manifestarem em forma visível, o farão
mediante a aparência que desejarem. Qualquer forma, por mais bela
que seja, humana ou angélica, está dentro das capacidades
demoníacas. Poderiam aparecer como uma padre conhecido, de nosso
confessor ou mesmo do Santo Padre. Como é lógico, tal situação
criaria um cenário de total insegurança, o que faz com que Deus não
o permita. E Deus, visando nosso Bem maior, não somente lhes veda
este tipo de aparições tão insidiosas, mas também lhes veda
aparecerem de qualquer maneira, sendo-lhes permitido apenas de certos
modos determinados. Para que nos fique claro, somos como crianças ao
lado deles, diferindo eles de nós apenas por seu caráter maléfico.
E
assim, Deus somente lhes permite aparecer tais como sombras que se
movem, como criaturas monstruosas, como anões de aspecto enegrecido
[como se estivessem sujos de carvão]. Em relação a essa última
forma de manifestação [dos demônios] desses homenzinhos escuros,
aparecem esporadicamente na tradição literária cristã desde a
época dos Padres do Deserto39. Mas, não somente por meios dos
escritos destes últimos, mas inclusive por relatos de Santa Teresa
de Jesus, Santa Teresa de Lisieux (em um de seus sonhos) e em outros
casos, como o da menina Alexia (n. 1971 – 1985 †) voltarão a
contar que presenciaram aparições de seres não humanos com
aparência de homens pequenos e de cor muito negra.
Quando
dizemos que Satanás é um dragão ou uma serpente, queremos
significar que ele tem caráter monstruoso, selvagem, peçonhento e
astuto desses seres. Mas, não que tenha em algum caso essa
aparência, já que segue sendo um belo anjo por sua natureza, ainda
que repugnante em seu aspecto moral. A deformação que Satanás
sofreu foi em sua essência, não em sua natureza. Seu ser interior
se degenerou, mas sua natureza permanece permanecerá intacta, faça
o que fizer. Dado que ambas as coisas são indissociáveis, ele
verdadeiramente é um monstro, um ser deformado que causa repugnância
e aversão.
52.
É o demônio que leva à “noite do espírito”?
Todo
aquele que busque a Deus de todo o seu coração e dedique-se
sinceramente à oração e ao ascetismo, cedo ou tarde, adentrará a
uma fase conhecida por todos os santos como a noite do espírito.
Esta é uma fase da evolução espiritual pela qual se faz necessária
que passemos para penetrar na vida mística. É impossível alcançar
certos níveis de Amor a Deus sem sofrer esta purificação. Tal se
efetiva por meio de sofrimentos aceitos por Amor a Deus e mediante a
perseverança. Esta noite constitui-se de uma série de tentações
obsessivas de origem demoníaca.
Nesta
fase nos parece que o Demônio pretende, a qualquer custo, deter o
avanço espiritual daquela pessoa (que está na noite), tentando
leva-la a sucumbir em graves pecados. O Demônio sabe que precisa
tratar de fazê-la pecar ou se distanciará para demasiado além de
seu alcance.
A
literatura dos santos é riquíssima em textos relacionados às
noites do espírito. A seguir, uma descrição que nos dá acerca
dessa fase uma humilde costureira estremenha40, do séc. XIX, chamada
Javiera del Valle:
“Quando
a alma decide a não querer nada mais além de seguir ao seu Amado
Redentor, fixando n’Ele sua morada, Satanás, enfurecido, com o
único desejo de fazer por Ele, se pudesse, sofrer à alma o mesmo
que sofrer seu Amado Redentor, contra ela reúne seu exército
infernal.
(...)
se propõe a arrancar de nós a três virtudes teologais. Mas o que
ele vai tentar suprimir primeiro em nós é a Fé, pois, conseguido
isto, fácil fica conseguir apagar as outras duas; porque a Fé é o
fundamento donde se ergue todo o edifício espiritual, que é o que
ele deseja e pretende destruir.
Deus,
então, se cala; não impede que {Satanás] atente contra a alma.
Antes, pois, prepara os caminhos para que seja mais dura a batalha.
E
também tem nele seus objetivos, pois a preparação para a batalha
serve para confundir ao Inimigo, decepcionado, para derrotá-lo na
mais ignominiosa queda e para que saiamos vencedores nesta batalha e
nos tornemos mais fortes para o que advir no futuro.
Quando
Satanás já se aproxima para a batalha, a primeira coisa que
perdemos de vista é a luz clara e esplêndida que Deus havia nos
dado para que fôssemos capazes de conhecer a Verdade.
A
escola [do Espírito Santo] se fecha para nós; a memória e a Razão,
por violência da dor e a intensidade do sentimento que tem a alma,
parece-nos que se perderam.
Pobre
alma! Anseia buscar a Deus, e não sabe. Quer clamar por Ele, mas não
consegue articular nem uma palavra sequer. Esqueceu-se de tudo; com
tão pungente pesar, se sente só, sem companhia alguma.
Ao
que poderei comparar tal estado de coisas? Com nada isto identifico,
senão com essas noites de verão, durante as quais se levantam no
horizontes essas nuvens tão carregadas e medonhas, através de cujo
negrume nada se vê, a não ser relâmpagos assustadores, trovões
que a tudo fazem tremer, vendavais enfurecidos, recordando-nos o
Juízo de Deus para o fim do Mundo, o granizo e os calhaus, que a
tudo parecem querer destruir.
Não
acho imagens as quais usar para comparar a essas noites da alma: só,
sem seu Deus, pressente como a vir contra ela um exército furioso,
que a ela dizem: “Estás enganada!”. Gritam que não há Deus,
cercando a alma por todos os lados. Soberbos em sua retórica, armam
conferências sem que ela as solicite, não dando a ela um minuto de
sossego, com argumentos tão fortes e agressivos que quase dão a
entender que a querer fazer crer à força que não há Deus. Com
tais ataques verbais, ruminam que não aquele Deus ao qual ela busca.
O domínio sobre a pauta do que a alma vê e pensa é como essas
hostes infernais pretendem fazê-la crer à força, e nada mais do
que apenas o que esses inimigos querem que ela creia.
(...)
Neste tão imenso, quase infinito sofrimento e pressão psicológica,
para além e lá ao longe, como uma coisa sonhada que não se sabe
que se há sonhado, acordamos e nos damos conta da Igreja e do Amor
que a ela devemos ter. E esta lembrança, como quando a alguém falta
o conhecimento e, voltando a si, fala entre meias palavras, assim a
alma sem voz, tartamudeando, desatou a falar: uno-me a toda a Fé que
reza minha Mãe Igreja e não quero crer em qualquer outra. E, assim,
sem poder dizer ou falar nada mais, e muito menos conseguir entender,
passei meses e meses, até que haviam se passado dois anos.
Tinha
dezoito anos de idade quando isso aconteceu comigo, e quando tanto
sofria e por tanto chorava a perda de minha Fé, eis que, para mim,
amanheceu este dia claro e prazeroso.
E,
assim como eu, sem saber nada, neste estado percebi que me fizeram
adentrar, também agora vi e senti que dele me retiraram.
Javiera
del Valle (1856-1930), Decenario del Espiritu Santo, dia VIII.
-
A
noite do espírito supõe uma série de tentações ateístas, contra
a Fé, contra os escrúpulos, de seduções ao suicídio, de
atmosferas depressivas ou de qualquer outro estado, mas sempre muito
intensas. Tentações ao suicídio assaltaram Santo Inácio de Loyola
e Santa Teresa de Lisieaux. Contra a Fé na existência de Deus,
sofreu tentação Madre Teresa de Calcutá. O grande mestre
(experimentado) na noite do espírito é, sem dúvidas, São João da
Cruz. A leitura de A subida ao Monte Carmelo será deveras útil para
a instrução de confessores de pessoas que estejam padecendo estas
atribulações.
Os
diretores espirituais, sobretudo de religiosas, devem recordar a
essas almas sofredoras que não há nada que possa evitar o
sofrimento [inerente à] da noite do espírito. É uma fase que acaba
somente quando Deus quer. Devem consolar essas almas,
relembrando-lhes que o Demônio está aí cumprindo a função do
cilício. Mas, quanto mais intensas forem suas tentações, mais
rapidamente cessam. E quanto mais amenas, mais se prolongam.
53.
Deus odeia os demônios?
A
resposta é não! Deus não odeia nada nem ninguém, é um ato de
Amor puro. Em Deus, não cabe o ódio. O agir de Deus é um só ato
de Amor no qual estamos todos estamos inclusos. Dizemos nós que Deus
ama ou odeia, ama mais ou menos, segundo os efeitos que procedem
d’Ele para conosco. Se Deus permite o castigo do pecador,
costumamos dizer que Deus castiga o pecador. Se Deus recompensa a
virtude, dizemos que Deus ama o virtuoso. Se Deus premia mais no Céu
ao que é mais santo, dizemos que Deus ama ao que é mais santo. E,
assim, poderíamos seguir com todas as graduações possíveis, e
todas os tipos de bênçãos, prêmios, sofrimentos e condenações.
Mas isto é assim segundo nossa opinião (quoad nos, como diria São
Tomás de Aquino), porque, no entanto, em Deus existe um só Ato de
sua Vontade. E sua Vontade apenas ama.
E
é isso, justamente, o mais terrível! Os condenados não podem pedir
a misericórdia de Deus porque foi o Amor Infinito que os condenou
por toda a Eternidade. Na Divina Comédia, Dante [Alighieri] coloca
essa inscrição no arco de entrada ao Inferno:
“Por
mim, chega-se à cidade do pranto; por mim, chega-se à eterna dor;
por mim, dá-se a conhecer a raça condenada (...). Fiz de mim a
Divina Potestade, a Suprema Sabedoria e o Primeiro Amor. (...) Ó,
vós que entrais: abandoneis toda a esperança!”
O
que essa inscrição tem de terrível, por mais que se trate de um
verso de poema, é que, verdadeiramente, foi o Amor – e não o ódio
– que permitira a existência do Inferno. Logo, não se poderia
apelar ao Amor para que destruísse o Inferno. Deus ama os demônios,
mas os condena!
Se
Deus não odeia, tampouco o exorcista deve odiar [o Demônio] ao
realizar o exorcismo. O Demônio pode lhe dizer coisas que lhe
incitem a odiá-lo para, assim, dificultar o exorcismo [por não
deixar que o Amor de Deus pela vítima se manifeste diante do ódio
nutrido pelos dois “oponentes”]. Lembro-me de um exorcismo em que
a mãe perdeu o controle de si e se lançou, furiosa, contra o
demônio que estava de posse do corpo de sua filha. Tranquilamente, o
demônio sorriu malevolamente, satisfeito, e lhe disse: “Com ódio,
não me expulsarás!”
54.
Podem os demônios congregar seus esforços para influenciar uma
sociedade?
O
grande poder do Demônio consiste em tentar. E, como os demônios
comunicam-se entre si, podem entrar em acordo [pacto, aliança] para
tentar visando um mesmo objetivo. Em 1932, os demônios compreenderam
perfeitamente que para que, seus planos tivessem melhor sucesso, era
preferível que tentassem o povo alemão a votar naquele candidato,
deveras ignoto, chamado Adolf Hitler. Isso significa que sua ascensão
ao poder se deve à atuação dos demônios? Não, mas, sem dúvidas,
eles o ajudaram [bastante].
Igualmente,
devemos recordar que os Santos Padres dos primeiros séculos da
Igreja, ao tratarem do tema das perseguições contra os cristãos,
assinalaram como primeira e principal causa a instigação dos
demônios tanto sobre as massas [corrompidas e viciadas] como sobre
os governantes.
Outro
exemplo claro do que acima fora dito seria o do Cardeal Nasalli Rocca
quando, escrevendo em sua Carta Pastoral de Quaresma (Bolonha, 1946),
disse que o secretário do Papa, mons. Rinaldo Angeli, lhe havia
contado, várias vezes, como S.S. Leão XIII teve uma visão dos
espíritos infernais que se concentravam sobre Roma, sendo essa o
motivo da oração que ele quis que se recitasse em toda a Igreja e
que foi expedida aos Ordinários em 188641.
Sim,
efetivamente, os demônios também têm suas estratégias em comum e
se aliam uns aos outros para realizar seus intentos. Podem
concentra-se [concentrar sua atuação] em um local determinado.
Ambicionam fazer cair a todas as almas, mas sabem que algumas delas
têm uma habilidade especial de arrastar atrás de si grande número
de pessoas, seja por sua capacidade de persuasão, poder ou dinheiro.
Portanto, as forças do Mal estão conscientes de que essas “elites”
são alvos preferenciais a serem aprisionados em sua teia de
influências. Em política, os demônios jamais são neutros,
Analisam a situação e elegem as pessoas que mais favorecem suas
estratégias. Felizmente, a trincheira do Bem tem, por sua vez, os
Anjos e as muitas pessoas que, com suas orações, ajudam a
desbaratar os planos que são partes da Obra das Trevas. Por isso, é
tão importante a oração e o sacrifício. Os mosteiros, as pessoas
de oração, etc., são as forças invisíveis que, não só fazem
frente ao poder do Inferno neste mundo, mas, também, enviam
copiosamente toda sorte de bênçãos sobre nós.
Além
de tentar explicar essa luta invisível entre poderes espirituais,
não devemos nos esquecer que somos nós os autores de nossa
história. Todas essas forças invisíveis do Mal são apenas
influências. E, ao final disso tudo, cada homem age como quer e se
torna responsável único pelo faz. Nem todos os demônios do Inferno
podem, em última análise, obrigar alguém, mesmo um pecador, a
tomar uma decisão contrária à sua Vontade.
O
poder da oração é tão poderoso como os mais poderosos exércitos
ou as maiores fortunas. Uma só pessoas humilde e anônima, com sua
oração pode evitar guerras, que ideologias malignas ascendam ao
poder, etc. Somente os demônios sabem o quão temível pode ser uma
oração que a eles venha se contrapor.
55.
Por que Satanás não se manifesta aos homens em pleno uso de seu
Poder?
Assim
como o Messias manifestou-se por milagres e, desta forma, muitos
n’Ele creram, também o Diabo poderia manifestar plenamente seu
poder para enganar e seduzir as multidões. Há alguma dúvida que,
se Satanás abertamente como um anjo de luz, muitos o seguiriam?
Poderia operar prodígios, curar algumas enfermidades, predizer
alguns eventos futuros. A razão pela qual Satanás não lança mão
de todas as suas faculdades abertamente nos é dada por São Paulo:
“E
sabeis o que agora o segura, para que se revele em seu devido tempo;
pois, o Mistério da Iniquidade já está atuando [no mundo]. Há um
somente nesse meio que resiste, até que daí seja retirado. Então,
se revelará o Ímpio.
(...)
cuja vinda, dada o ímpeto do Adversário [Satã = Adversário, em
hebr.], será acompanhada de toda a sorte de prodígios, sinais e
portentos próprios da Mentira.”
(2
Tessalonicenses cap. 2, vv. 6-8)
O
Diabo é soberbo, queria ser adorado; as pessoas são débeis, se
deixam enganar. Mas, [Satanás] não pode lançar mão de todo o seu
Poder, pois Deus retém a manifestação de sua força. Até mesmo
Satanás, que odeia Deus e trata de operar todo o Mal que lhe seja
permitido, está vinculado aos desígnios da Vontade de Deus. Um
desses desígnios nos diz que ele não poderá manifestar-se em todo
o seu poder antes de chegado o Fim dos Tempos. Até lá, os prodígios
estarão limitados aos pequenos grupos satânicos nos quais, assim
que possa, manifesta-se quando invocado. Mas, estas reduzidas
aparições extraordinárias e por seu agir comum (i.e., através da
tentação), através da concentração de forças demoníacas em
locais e momentos concretos para congregar e obter algo, por tudo
isso que São Paulo diz [supracit.] na epístola que já o Mistério
da Iniquidade está atuando, mas que, todavia, não manifestara-se
ainda de todo.
56.
Dentro da Igreja, quem o Demônio mais odeia?
A
Igreja conta, em seu seio, com cardeais, arcebispos, clérigos de
todas as categorias, teólogos, pessoas dedicadas à Caridade,
missionários, etc. Mas, o que o Demônio mais odeia é o ascetismo.
Disto podemos estar certos, pois a ninguém ele tenta mais do que
aquele que pratica a ascese42. Qualquer um, independentemente de seu
ministério ou função eclesial, esteja ali tantos ou quantos anos,
se decide-se a experimentar uma vida mais ascética, comprovará que
as tentações se multiplicarão por cem.
Isso
se deve ao fato de o Demônio saber muito bem que a ascese é uma
força poderosa, é a força da Cruz. E a força da Cruz rompe sua
influência neste mundo.
Alguém
poderia dizer que o que mais o Demônio temeria é o Amor e que,
portanto, o que mais ele deveria odiar são as obras de Caridade.
Mas, o Demônio sabe que ao que inicia a via ascética, e se
persevera, Deus concede o dom da Caridade em grau exímio, enquanto
que, se ele se dedicasse somente a obras de Caridade, quem sabe nunca
chegasse a iniciar uma vida ascética.
Há
pessoas que se dedicaram pela vida inteira às obras de Caridade e,
no entanto, abrigam em sua alma muitas mazelas. Alguém pode
voltar-se para a ajuda aos pobres e enfermos, por exemplo, mas,
todavia, fazê-lo em meio a murmurações, pessimismo,
desobediências, etc. Enquanto isso, o asceta que persevera na
purificação gradual de sua alma, acaba por obter todos os dons. Por
isso, o Demônio odeia muito mais o asceta do que a hierarquia
eclesiástica, ou mesmo os exorcistas. O exorcista expulsa um, dois,
uma dezena de demônios. O asceta quebranta, de modo muito mais
eficiente, a influência demoníaca neste mundo pelo simples fato de
carregar sobre seu corpo e espírito a paixão cotidiana de sua vida
crucificada.
57.
O Demônio sabia que Jesus era o Messias enquanto este estava
encarnado?
Como
já dissemos anteriormente, o Demônio não sabe de tudo, nem mesmo
sabe tudo o que acontece na Terra. Os demônios perpassam este mundo,
estão entre nós, mas sempre indo e vindo. Os espíritos malignos,
especialmente, vigiam aos santos. [Na verdade, os espreitam ou
atocaiam] Aos demônios, não passou despercebido que Jesus era um
homem especialmente Santo. Os demônios viram que Jesus e Maria eram
os seres humanos mais santos que habitaram sobre a terra. Não
percebia neles o cometimento de pecado algum, ou de qualquer
imperfeição moral. O Diabo é pecador, mas sabe pesar e ponderar
perfeitamente a virtude. Sob este aspecto, podemos dele dizer que é
um notável avaliador da virtude e de joias espirituais. Esta tarefa
– a de avaliar – a realiza ele como o mais perfeito mestre da
vida espiritual.
Mas,
apesar de Jesus e Maria terem sido vigiados por ele [o Demônio], o
mesmo não nada via além dos corpos de Jesus e Maria. A Divindade de
Jesus permanecia como atributo invisível. Quando se iniciaram os
milagres públicos de Jesus, cada vez mais os demônios se
perguntavam se aquele era mais um profeta ou, enfim, o Messias. A
suspeita, pouco a pouco, foi dado lugar à certeza. A suspeita
crescia não só pelo que [Jesus] operava, mas também pelo que dizia
e ensinava. Ainda que houvessem Apóstolos que escutassem, sonolentos
e entediados, a Jesus pregar, não eram pela ação dos demônios que
se portavam assim. Desde logo, os demônios sabiam, por deliberações
e análises suas, que Jesus era Deus atual, e logo isso ficaria
claro.
Mas,
ainda que lhes tenha ficado claro que Aquele homem não era apenas
mais um homem, o assunto teria sido complexo para um teólogo humano
que presenciasse tais fatos. Moisés havia operado milagres mais
assombrosos. É certo que Jesus realizava milagres que exorbitavam de
longe a natureza angélica (ressuscitar mortos, por exemplo). Mas,
contra isso podia-se alegar que, afinal, não era Ele – Jesus –
quem os realizava, mas Deus, seu Pai. E, se era Ele a operar, Jesus,
por seu próprio poder (e não Deus-Pai), como discernir ao que se
deviam os milagres, já que eles só presenciavam os efeitos?
O
assunto não era simples, mas logo lhes ficou claro a eles, por bons
conhecedores de Teologia que são, que Aquele homem era Deus
encarnado. E assim se veem nas possessões, quando, por exemplo, lhe
dizem: “Vieste nos atormentar antes do tempo?”. Ao dizerem isso,
mostram saber que Ele era Deus, o mesmo Deus que, ao final dos
Tempos, no Juízo Final, os condenaria,
58.
Jesus sofreu a Tentação?
Jesus
era impecável. Como verdadeiro homem que era, nada lhe impedia de
pecar. Para pecar, era livre, e bastaria um só ato de sua Vontade.
Mas, ao mesmo tempo, era impossível que pecasse por causa de sua
Bondade. Mas, o fato de ser impecável não significa que estivesse
isento de sofrer a tentação. Ele a sofrer. Como homem, foi alvejado
pelos dardos da Tentação. Teve de resistir a ela, e isso lhe custou
bastante. N’Ele, não havia concupiscência, inclinação ao Mal
nem fraqueza em sua Alma. Mas, para sentir os tormentos da Tentação,
nada dessas coisas são necessárias. Muitas vezes, nós, cristãos,
ao meditarmos sobre a Vida de Cristo, não ressaltando o fato de Ele
ser Deus, não valorizamos suficientemente o sofrimento da Tentação
em Cristo.
Especialmente,
deveríamos sempre agradecer [a Nosso Senhor] sua última Tentação,
aquela na Cruz, a mais forte e mais pungente de todas: a Tentação
do abandono. Da Paixão, valorizamos seus sofrimentos físicos, mas
não nos damos conta que seus sofrimentos espirituais foram muito
mais dolorosos que os externos. A Paixão interna foi muito pior que
a externa, a Paixão espiritual muito pior que a corporal. Ali,
diante da Cruz, estava o Inferno em peso. Cada um dos demônios
estavam ali, rodeando a Cruz, contemplando em deleite ao seu triunfo:
Deus crucificado! Era o maior dos sonhos demoníacos, o mais
acarinhado de seus anseios, tornado real!
O
que eles, entretanto, não podiam imaginar naquele momento de
vingança e ódio era que sua maior vitória era, sim, sua pior
derrota. A maior derrota nesse mundo, ao contrário, era a maior
vitória no Reino dos Céus. A Redenção estava consumada. E, em
seguida, a Ressurreição [de Cristo] foi algo que deixou os demônios
sem fala, perplexos. Sua vitória demoníaca não havia lhes servido
para absolutamente nada e, para o Alto, Cristo regressava adornado
por todos os tesouros do Amor alcançados por Sua Paixão. A derrota
era como uma luva que devolvia-lhes em riste. E eles, os demônios,
tinham sido usados como instrumentos para essa vitória do Amor.
Mas,
para complicar ainda mais sua situação, havia um fato, tão ou mais
espantoso que a vitória do Amor, do qual logo se deram conta:
Deus-Pai não havia poupado da Paixão [ou seja, do sofrimento] nem
mesmo ao Seu Filho. Este fato trazia em si implicações tremendas.
Se Deus-Pai, como penhor pela reparação dos pecados da humanidade,
não havia poupado nem o Justo, então poderiam eles considerarem a
si mesmos imperdoáveis ao findar os Tempos. A Paixão na Cruz
supunha a prova tangível de que a Justiça Divina não poderia ser
ignorada em vão. Foi nesse momento em que se conscientizaram todos
os demônios de que sua condenação não seria em nada atenuada,
pelos séculos dos séculos. Por isso, de estarem contemplando com
satisfação sua vitória maligna pela Paixão [de Cristo] na Cruz,
passaram a ver para sempre a mesma Cruz como terrível memória da
Justiça Divina. E. diante disso, sobretudo, os demônios odeiam
máxime43 a imagem da Cruz mais do que a imagem da Santíssima Virgem
Maria, de qualquer outro santo ou que represente algum mistério
sagrado.
A
lembrança do que eles mesmos, como testemunhas, contemplaram há
dois mil anos, ali, é algo que fariam de tudo para apagar de suas
mentes sem, no entanto, conseguirem. Quando veem [ou visualizam]
qualquer cruz, recordam sua derrota e que ali, naquele momento,
perderam a esperança de qualquer anistia [reconciliação, perdão].
59.
Qual foi a criatura mais excelsa criada por Deus: a Virgem [Maria] ou
Lúcifer?
Antes
de tudo, devemos precisar alguns termos. Nesta questão,
consideraremos que Lúcifer (cujo título significa Estrela da Manhã)
é o nome do Diabo antes de cair. Ou seja, seu nome como anjo antes
de tornar-se demônio. Procedo a este esclarecimento porque, ainda
que Lúcifer seja considerado, por muitos teólogos, um nome sinônimo
de Satanás, segundo outros é um demônio distinto deste último.
Também damos por óbvio nesta questão que Lúcifer era a mais
excelsa natureza angélica criada por Deus. Feitos estes
esclarecimentos, voltemos à pauta que nos ocupa.
É
preciso que se diga que a mais excelsa natureza criada por Deus foi
Lúcifer. A Virgem santificou-se, dia a dia, com esforço
[obviamente, em meio à Graça de Deus]. Ela, com seus sacrifícios e
obras, auxiliada pela Graça de Deus [como já dito], conseguiu
tornar-se a criatura mais excelsa. Mas, sua excelência espiritual
não foi um ato da Criação de Deus, mas fruto de sua santificação,
enquanto que Lúcifer, como a natureza de maior grandeza criada por
Deus, foi a mais excelentes entre as criaturas angélicas. Deus criou
a Lúcifer magnífico em sua natureza, terminando por corromper-se.
Deus criou Maria humilde em sua natureza, simples mulher e, assim,
inferior aos anjos, se santificou. Como podemos perceber, há um
grande paralelismo entre essas duas figuras [Lúcifer e a Virgem
Maria], embora sendo um paralelismo inverso [ou inversamente
proporcional]:
Lúcifer
é a criatura mais perfeita por sua natureza, enquanto a Virgem pela
Graça;
o
primeiro se corrompe, a segunda se santifica;
Ele
quer ser adorado como rei e nega-se a servir, terminando por nem
servir nem torna-se rei; a ela, não importa se é algo ou não, é
mais caro servir, tornando-se Rainha.
Além
de tudo isso, até nos títulos há também paralelismo, entre a
angélica Estrela da Manhã (Lúcifer) e a Estrela da Manhã da
Redenção (Maria).
A
primeira estrela caiu do firmamento angélico; a segunda, ao Céu se
elevou. A primeira estrela, que era espírito, caiu na terra; a
segunda estrela, que era corporal, ascendeu aos Céus. Lúcifer se
recusou a aceitar o Filho de Deus feito homem; a Virgem não somente
o aceitou, mas também o recebeu em seu ventre. Lúcifer era um ser
espiritual que, finalmente, tornou-se pior que uma besta (sem deixar
de ser espiritual); ela era um ser mortal que logrou tornar-se melhor
que um anjo (sem deixar de ser mortal, antes de ascender aos Céus).
Lúcifer se bestializou; ela se espiritualizou.
Agora
só há uma Estrela da Manhã, que é a Virgem44. Pois, além de a
primeira estrela ter caído, a segunda brilhou com a luz da graça
muito mais bela e intensamente do que a primeira Estrela com somente
a luz de sua própria natureza.
60.
Por que a água benta atormenta o Diabo?
Que
tipo de influência algo material (tal qual a água benta) poderia
exercer sobre uma natureza espiritual (como a demoníaca)? Parece que
ambas as naturezas – física e espiritual – são tão distintas,
tão independentes, que o material, de forma nenhuma, possa expulsar,
provocar incômodo ou efeito algum sobre o demônio. Outrora, em
obras anteriores, escrevi que, se o material (água benta, o Santo
Crisma, etc.) exerce influência de tal modo a atormentar e expulsar
demônios não é por seu mesmo veículo material [a água, o óleo
de unção, etc.], mas porque a Igreja uniu a esse tal elemento
material uma virtude espiritual ao abençoá-lo. Ou seja, a Igreja,
pelo poder que recebeu de Cristo, pode acrescentar poder espiritual a
um objeto. Portanto, o objeto, ou elemento material, não é nada em
si mesmo, e sim que o que age através dele, o poder de Cristo, é
que exerce o poder de fustigar, afugentar ou expulsar os demônios.
De
qualquer maneira, minha experiência por todos esses anos me
confirmou essa opinião. Sigo sustentando a mesma linha de
raciocínio, mas comprovei que não chega-se ao mesmo fim ao
benzer-se a essa ou aquela matéria indiscriminadamente. Há
elementos que, pelo que representam em si mesmos, têm uma
efetividade mais concreta. E acerca deste ponto, contarei um caso
verídico.
Em
certa ocasião, não contávamos com água benta na paróquia [em que
eu residia]. Fazia muito frio e a água congelava nas tubulações. A
água contida nas pias de água benta não se podia dar a beber a uma
possessa, já que esta água estava parada há vários dias nas pias,
além de que os fiéis costumavam meter os dedos [nem sempre limpos]
nas mesmas. Assim, quando eu já estava prestes a sair da paróquia
em busca de água, naquela manhã gelada, lembrei-me que havia uma
garrafa de limonada que tinha sobrado de uma reunião de catequistas.
Me passou pela cabeça benzer a garrafa de limonada, pensando que o
tipo de material [a ser benzido] era o que menos importava, e sim
mais a oração que ao objeto se vinculava. Pois bem, ainda que
produzisse algum efeito, observei que era bem menor. Ao fim de uns
minutos, ordenei ao demônio que me dissesse por quê não estava a
limonada surtindo o mesmo efeito. Resistiu, mas, por fim, disse que a
água era símbolo da pureza e da limpeza. Disse também que aquele
outro líquido bento produzia, sim, certo efeito, porém menos.
Se
observarmos as matérias que a Igreja benze ou consagra, notaremos
que todas contêm um simbolismo implícito: o sal, o incenso, a água,
o óleo, as velas e o pão.
61.
Que outros objetos podem atormentar o Demônio?
As
relíquias do santos também atormentam aos demônios, pois estão
cheias da unção espiritual desses santos.
Um
crucifixo atormenta ao Demônio, ainda que não tenha sido benzido,
porque lhe recorda sua derrota no Calvário e o consequente triunfo
de Deus. Também lhe indica que Ele será seu Juiz no Juízo Final,
etc.
O
mesmo vale para todas as imagens religiosas: lhes atormentam porque
lhes recordam, mesmo sem estarem benzidas. E, doravante, no ato mesmo
em que tais imagens são benzidas, se pede a Deus, expressamente, que
possam afastar e repelir aos demônios.
62.
Qual é o demônio do “meio-dia”?
A
acídia é a contínua e intensa resistência pelas coisas
espirituais que sofrem os ascetas e místicos em certo momento da
evolução de sua vida interior [ou seja, vida espiritual]. Ao
demônio que tenta o asceta com a acídia, foi dado o nome de demônio
do meio-dia ou meridiano. O nome meridiano ou meio-dia vem de uma
tradução errônea do texto hebraico do Salmo 91, v. 6, por São
Jerônimo. Em hebraico, nesse texto, é dito: “não temerás (...)
o extermínio que devasta ao sul.” Mas, São Jerônimo traduziu
como “não temerás ao demônio meridiano”. Meridianus, em latim,
ora significa “do sul”, ora “do meio-dia”.
Desde
que este versículo passou à Vulgata com essa tradução, foram
muitos os comentaristas que elaboraram suas exegeses de acordo com a
segunda acepção da palavra latina [ou seja, “do meio-dia”].
Deste modo, foi-se criando uma vasta literatura que falava que vinha
tentar os eremitas ao meio-dia. Mas, por que ao meio-dia? Pois era o
período em que, após o almoço, descansavam de todo o trabalho
realizado pela manhã. E, durante este descanso, na solidão, sem
nenhuma oração prescrita para esse momento, era quando sentiam o
peso da vida ascética que haviam abraçado. Daí que se tornara
compreensível por que sentiam aquelas setas envenenadas da tentação
justamente nesse período do dia.
Depreende-se,
também, que o demônio meridiano, na literatura ascética, não
representa um demônio em particular, senão a uma categoria distinta
de tentações. Ou seja: a sensação contínua e prolongada de
aspereza espiritual que sofrem os eremitas e monges, ao sentirem a
dureza da vida que abraçaram e nenhum gosto pelas coisas
espirituais.
Isto
que referimos acima é o que a tradição espiritual [Católica,
obviamente] entende por demônio meridiano. Mas, vejamos: é este o
nome concreto de algum demônio? Todas as tentações de acídia
procedem de um só demônio? Se [o demônio meridiano] é um demônio
concreto, é algo de que nunca poderemos estar plenamente certos,
ainda que eu já tenha relatado que, em um certo exorcismo, um
demônio tenha dito que Meridiano era a quinta mais importante
potência na hierarquia infernal. Mas, se a Bíblia não o confirma,
não podemos, portanto, assegurar nada disso. À pergunta de se as
tentações de acídia procedem sempre do mesmo demônio, respondo
que não, necessariamente. Uma pessoa colocada em uma situação de
renúncia completa aos prazeres do mundo pode sofrer estas tentações
sem necessitar da intervenção de um demônio.
63.
Com o que os anjos ocupam seu tempo?
No
mundo dos anjos, a exemplo do mundo dos seres humanos, há os que se
ocupam de certas coisas, e outros de outras coisas. Ainda que os
anjos não tenham que cultivar terras, construir casas, confeccionar
roupas e objetos nem nada daquilo de que nos ocupamos, os anjos se
ocupam de glorificar a Deus, em se aprofundar no mundo do
conhecimento, em relacionarem-se entre si e auxiliar os homens.
O
mundo intelectual é um campo tão vasto que lhes ocupa de forma
semelhante a nós. Em uma universidade, por exemplo, pode haver
centenas de professores, cada um especializado em um ramo do saber.
Em uma universidade, trabalham, por diversas horas diárias, centenas
de professores e catedráticos, e todo esse trabalho, essa atividade,
está ordenada a produzir apenas uma coisa: o conhecimento. O mesmo
acontece no mundo dos espíritos angélicos.
As
relações entre os anjos pode parecer pouca coisa [ou algo vago,
imponderável]. Mas, as relações entre os seres humanos necessitam
de protocolos, embaixadores, cônsules, visitas, reuniões, etc. Uma
centena de seres humanos comunicam-se, assim, entre si, mas o
restante dos 7 bilhões [de seres humanos], não. Algo semelhante
ocorre com os anjos, que perfazem uma verdadeira sociedade, com
características complexas. Além do mais, tais relações entre os
anjos não visam apenas o conhecimento, mas também a Caridade. Os
anjos não apenas confidenciam coisas, mas também se reencontram, se
querem bem uns aos outros, têm amizades entre si, etc. Não
esqueçamos que nós, seres humanos, somos, a exemplo deles,
constituídos de Inteligência e Vontade, e que nossas relações nos
servem de perfeito referencial para compreendermos como se dão as
interações entre seres dotados dessas duas potências espirituais
[Inteligência e Vontade].
64.
Existe sacerdócio no Mundo Angélico?
Antes
de tudo, devemos ter em mente que entre os homens há um sacerdócio
natural. Melquisedeque era autêntico sacerdote – assim o afirma a
Bíblia –, e nem pertencia ao Povo Eleito. A essência do
sacerdócio está em oferecer sacrifícios. O sacerdote é aquele que
oferece sacrifícios em nome de toda a sua comunidade [onde ele
vive]. É uma característica de todas as civilizações designar
alguém para ocupar-se do culto à Divindade. E tal sacerdócio,
ainda que possa não ser diretamente instituído por Deus, é um
verdadeiro sacerdócio que glorifica à Divindade. Pois, assim, ele
oferece um culto a Deus em nome de todos. Esta função litúrgica,
cultual, sacrificial, é uma instituição que não somente Deus não
condena em sua Revelação, como a eleva: torna-a sua e lhe confere
poderes especiais.
Sim,
como havíamos dito antes, há muitas ocupações entre os anjos, e
não devemos nos esquecer da mais importante de todas: a glorificação
da Divindade. Todos os anjos lhe glorificam. Mas, não falo apenas da
glorificação individual, mas também coletiva. Bastaria que Deus
fosse glorificado, louvado e enaltecido por cada um dos seres
inteligentes. Mas, o Amor a Deus os leva a glorificar-lhe de todas as
formas possíveis. Uma dessas formas é a glorificação coletiva.
Quando vários deles que amam a Deus se põem de acordo para honrá-lo
conjuntamente, desde aí se fundam as bases para um ato litúrgico.
Quando este ato já exorbita o número de algumas centenas de seres,
mas de bilhões, então estamos diante de uma verdadeira liturgia
celestial.
Neste
sentido, sim, há anjos que cumprem uma função sacerdotal. Ou seja:
há espíritos angélicos que, nessa liturgia eterna, representam os
demais anjos. Que tipo de sacrifício oferecem? Oferecem o sacrifício
de louvores de todos os espíritos os quais representam e cuja glória
oferecem à Trindade. Se trata de um sacrifício incruento e
imaterial45. É uma oferenda de glória46.
64.
É adequado retratar o Demônio com corpo humano e chifres?
Já
foi dito anteriormente que o Diabo não possui forma alguma pela qual
possa ser visto, sendo essa representação tradicional com chifres
completamente convencional [fruto de convenções]. Ou seja, trata-se
de um signo, assentado pela Tradição ocidental durante séculos,
que é portador um significante47. De qualquer forma, é um signo
muito adequado, pois combina dois elementos: a racionalidade,
representada pela forma humana (único exemplo que conhecemos de um
ser racional), e a bestialidade, figurada pelos chifres, rabo e
garras. De modo que se trata de um signo muito simples, mas que
reflete tanto a inteligência como o caráter pleno de fúria, de
animalesca bestialidade que caracteriza as manifestações deles (dos
demônios), em todas as épocas, através daqueles os quais
possuíram.
Igualmente,
o modo de representar os anjos, acomodado na tradição iconográfica,
também é apropriado. O anjo, ao ser representado como um homem com
asas, é um modo de significar racionalidade pelo aspecto humano do
signo e a sutilidade pelas asas. Ou seja, as asas representam a
capacidade de transportar-se de um lugar a outro, segundo sua
Vontade, sem obstáculos. Também é curioso notar que os anjos são
representados vestidos, enquanto que os demônios não, estes últimos
assim por seu caráter bestial.
66.
Por que há água benta à entrada das Igrejas?
Se
alguém se persigna devotamente com água benta, pode-se produzir
três efeitos: atrai a Graça Divina, purifica a alma e afasta o
Demônio. Esse gesto de persignar-se com essa água nos atrai graças
divinas pela oração da Igreja. A Igreja ora sobre essa água com o
poder da Cruz de Cristo. O poder sacerdotal [conferido por Cristo aos
seus Apóstolos, e desses aos por eles consagrados] deixa uma
influência com essa água. Ao mesmo tempo, purifica parte de nossos
pecados [ou afasta a influência ou miasmas das tentações
diabólicas], tanto os veniais como os substratos que deles fiquem em
nossas almas. O terceiro poder da água benta é afastar os demônios.
Um demônio pode entrar, sem problemas, em uma Igreja. Suas paredes
não lhes fazem frente nem seu Solo Sagrado lhe pode refrear. No
entanto, a água benta, sim, lhe afasta.
As
pessoas costumam queixar-se de que se distraem com facilidade dentro
das igrejas. Os demônios têm grande interesse em distrair-nos
justamente quando estamos para entrar em contato com as realidades
sagradas. Por isso, é-nos tão útil a água benta à entrada das
igrejas. Ainda que usando a água benta possamos nos despistarmos dos
demônios, tenhamos certeza de que as distrações procedem de nós
mesmos, e não daqueles.
Ainda
que não possamos enxergar, com nossos olhos corporais, a Cruz que
formamos ao nos persignarmos com água benta, é certo que o Demônio
a pode ver. Para ele, tal cruz é como se fosse de fogo, como uma
couraça a qual não pode trespassar. Insisto em que persignar-se com
água benta ao entrarmos em uma igreja não é um ato meramente
simbólico. Ela (água) age por um símbolo (a Cruz), e recebe um
poder pela imposição das mãos do sacerdote mediante fórmulas de
oração específica. Tal poder Cristo logrou por sua Paixão na Cruz
e conferido aos seus sacerdotes legitimamente consagrados e em estado
de fidelidade a Deus e à Sua Igreja.
67.
Seria o Demônio um mero símbolo do Mal ou realmente existe?
De
fato, o Demônio é um mero símbolo e nunca existiu na realidade.
Assim como Saddam Hussein jamais existira e fora tão-somente um
símbolo criado pela CIA para personificar o antiamericanismo.
68.
Qual a diferença entre o temor a Deus e o temor ao Demônio?
“Não
temais os que matam o corpo, mas que não podem matar a alma. Temais,
antes, aquele que pode lançar à destruição a alma e o corpo na
Geena [Inferno].” (Mateus 10, 28)
O
versículo acima é de uma complexidade estupenda, apesar de parecer
simples. A grande pergunta é: quem é esse ao qual devemos temer?
À
primeira vista, o texto parece indicar que deveríamos temer ao
Demônio. A mensagem do versículo seria “não temais aos homens,
não temais àqueles que podem vos fazer mal nesta vida. Antes,
temais ao Demônio, que pode vos fazer mal na outra vida”. O
ensinamento seria o de que não devemos nos preocupar com os reveses
desta vida, mas com os males possíveis na vida futura e perpétua.
Este
entendimento, creio eu, foi o mais difundido ao longo da história da
exegese bíblica. E ele não está errado! É claro e simples: se é
certo nos preocuparmos com os que nos fazem mal neste mundo, muito
mais deveríamos nos preocupar com aquele que busca nossa condenação
eterna!
Porém,
também creio que há um sentido muito mais profundo neste versículo.
A mensagem mais sutil contido nele é que nada pode nos arrojar ao
Inferno, a não ser Deus. Nem homens, nem demônio, pois somente Deus
é Juiz, somente Ele pode nos enviar para lá. Daí que entende-se do
versículo que, se vivemos nesta mundo com vistas à Eternidade, não
há razão para temermos a quem quer que seja. Somente ao Juiz
Eterno. O versículo, portanto, é uma exortação ao santo Temor de
Deus.
O
temor ao Demônio deve ser pelos males que ele possa nos causar neste
mundo (enfermidades, desgraças, etc.) ou espiritualmente
(instigar-nos ao pecado para que sejamos condenados com ele). Mas,
esses males não estão livremente à sua disposição. As desgraças
e enfermidades nos acontecerão somente se Deus o permite. Logo, o
temor ao demônio não tem sentido, pois absolutamente tudo está nas
mãos de Deus. O temor ao Demônio está, portanto, teologicamente
infundado nem tem sentido. Ao lado de Deus, não há por que temer ao
Demônio. Ser crente e temer ao Demônio implica em uma contradição.
O
temor ao Demônio pressupõe uma certa falta de Fé na onipotência
de Deus, uma certa dúvida quanto ao Seu zelo amoroso e uma certa
ofensa à Sua Santidade, pois se Deus permitisse sem razão alguma o
sofrimento de Seus filhos, seria Deus injusto. O temor ao Demônio é
mal, portanto. Falo, obviamente, do temor consentido, não do medo
como instinto. Sentir medo desse ser (o Demônio) é, para alguma
pessoas, inevitável, e está acima de suas forças, como uma fobia
tal qual das pessoas que têm medo de alturas ou de cobras.
Se
o temor ao Demônio é mal, o santo temor de Deus é um dom do
Espírito Santo. É o temor de ofender a Deus e lhe perder. É,
sobretudo, o temor que se produz em nós quando comparecemos diante
de Sua Santidade sabendo que somos indignos d’Ele. Algum dia, no
Reino dos Céus, já não temeremos nem perdê-lo, nem ofendê-lo,
pois será impossível. Mas, todavia, manteremos, por toda a
Eternidade, o santo temor de Deus. Nem contemplando-o de eternidade
em eternidade, ou como nosso Pai, perderemos este dom. Muito pelo
contrário: teremos ainda mais consciência da quão infinitamente
excelso Ele é em relação a nós, e de nossa pequenez diante d’Ele.
Este
dom de Deus nos torna mais gratos por Ele nos permitir estar diante
d’Ele sem merecê-Lo. É um temor que não é mal, mas bom. Não é
contrário ao Amor, mas o aperfeiçoa [através da humildade e da
obediência].
Obviamente,
há um temor a Deus que é ruim e que leva ao desespero. Desse tipo
de medo, fala São João em uma de suas epístolas. Este medo quem
nos incita é o Demônio, enquanto que o temor de Deus [já descrito
à exaustão, anteriormente] é um dom do Espírito Santo.
Daí
que esse maravilhoso e profundo versículo [Mateus 10, 28] como que
nos diz: “Não deveis temer a nada nem a ninguém. Mas, se temeis
[por seres fracos na Fé], temais àquele que provoca males eternos e
não os deste mundo”. Mas, as mesmíssimas palavras que nos dizem
isso, nos querem dizer: “Mas, na realidade, temei somente a Deus,
Aquele que é Juiz da Eternidade”.
Sim,
vê-se que é um versículo com dois eixos internos aparentemente
contraditórios, mas que formam um quebra-cabeças no qual se
encaixam de forma perfeita.
69.
Em que ordem estão as três tentações sofridas por Jesus no
deserto?
Todo
mundo deve conhecer [ou deveria] as tentações impetradas por
Satanás contra Jesus no deserto. A tentação dos pães, dos reinos
e a de ser reconhecido. Mas, perguntemos: por que o Diabo tentou a
Jesus para que o adorasse se nem sequer tinha conseguido que Ele
cedesse a quebrar seu jejum? E, por fim, por que lhe tenta a se
atirar do Pináculo do Templo? Se Ele havia desprezado a glória do
mundo inteiro, por que a seguinte tentação [e última] foi de menor
importância?
À
primeira vista, pareceria lógico que as tentações começassem pela
de maior poder tentador. E, não conseguindo obter sucesso, que
Satanás lhe tentasse com pecados cada vez menos importantes, de
menor malícia. Se uma chave não entra por uma fechadura, se tenta
com uma chave menor, cada vez menor. Que lógica seguem essas [três]
tentações? Pareceria mais razoável que lhe tentasse com a
idolatria em primeiro lugar e, não obtendo êxito, que seguisse
tentando então com algum pecado intermediário. Finalmente, sem
nenhum êxito anterior, poderia tenta-lo com algo que nem sequer
pecado venial é, tal qual a quebra de um jejum voluntário.
Mas,
esta impressão de que se trate de uma sucessão ilógica de
tentações é uma impressão enganadora. A sucessão de ataques
segue uma lógica mais sutil. Segue a ordem de tentações que sofre
uma alma que se decide a levar uma vida espiritual. Por isso, há uma
magnífico simbolismo nestas três tentações.
O
Demônio primeiro tenta com tentações carnais, instintivas,
representadas no pão que mate a fome cotidiana e inevitável. Esta
tentação simboliza o que, na doutrina Ascética dos Padres do
Deserto, se chama de noite dos sentidos. Se uma alma resiste a esse
tipo de tentações (a saber, todas que conclamam os apetites
físicos), já não haverá razão para continuar tentando em um
campo em que a alma está suficientemente fortalecida.
Passada
a noite dos sentidos, o Diabo tenta com o mundo. O santo sente a
beleza do mundo, os atrativos deste mundo que havia deixado para
trás. Este é o símbolo da noite do espírito. Na noite do
espirito, o Demônio não tenta com esse ou aquele prazer. A
tentação, então, é o mundo em que o santo vive e do qual já não
usufrui nada mais. Se resiste a essa tentação, dá de cara com a
Soberba [que podemos chamar de Vaidade, Orgulho]. Uma vez que a alma
tenha superado a noite do espírito, o último perigo que lhe ameaça
é a Soberba pelos dons que recebeu em tal luta espiritual.
As
três tentações são símbolos das fases das tentações da vida
espiritual. A isso, temos que acrescentar que, concretamente, as que
o Diabo lançou contra Jesus foram especialmente sutis. Tenta
primeiro não ao pecado, mas à imperfeição, que é deixar de fazer
um bem. Depois, tenta com o bem espiritual pelos povos. É como se
lhe dissesse:
─
Faça
um gesto de reconhecimento para comigo, que sou soberbo, e em troca
estarei do seu lado. Te peço apenas um sinal de reconhecimento de ti
para comigo para que eu te possa ajudar na tarefa de salvar almas.
Afinal, não és tão humilde? Não és capaz de te abaixar apenas um
pouco mais pelo bem eterno das almas?
A
segunda tentação admite um sentido profundamente espiritual. Ele
não pedia a Jesus que deixasse de ser Deus, mas apenas o sacrifício
de humilhar-se um pouco mais. O Justo, que havia operado tantos
sacrifícios pelas almas, não poderia fazer mais um? É a tentação
de cometer um pequeno mal para alcançar um bem maior.
A
terceira tentação é a da soberba, a de não ocultar-se para evitar
a idolatria alheia, tentação de buscar o reconhecimento público.
Seria, no caso de Jesus, prescindir do fato de que é Deus, no
momento determinado por Ele, que exalta seus servos. Mas, ainda que
seja Deus que determina esse momento, essa hora, por que não poderia
Jesus adiantar o “relógio” de Deus? Por que permanecer nas
sombras, ao invés de sair à Luz e fazer tanto bem às almas, de uma
forma gloriosa e espetacular? Essa tentação, a terceira, é a mais
complexa de todas.
70.
Que são os mil anos em que o Diabo ficará acorrentado?
“Acorrentou-o
[ao Diabo] por mil anos [...], para que não engane mais às nações
por mil anos; depois disso, será solto por um pouco de tempo”.
(Ap
20, 3)
Poderiam
ser esses “mil anos” um símbolo do caráter eterno da condenação
lançada sobre o Diabo? Não, pois o texto que segue diz que, após
esse período em que ficará acorrentado, ficará livre por um pouco
de tempo.
Em
minha opinião, esse mil anos são um símbolo do tempo que vai do
fim das perseguições que sofreu a Igreja no tempo da pregação
apostólica até a perseguição [que ela sofrerá] do Fim dos
Tempos. Isto é, desde o fim das perseguições do Império Romano
contra os cristãos até as que começarão após a Grande Apostasia.
Como é evidente, muitas perseguições ainda sofreu a Igreja, mesmo
após o Edito de Milão, mas tanto as do início do Tempo Apostólico
como as dos tempos que se seguiram (aquelas descritas no Apocalipse)
têm uma característica comum: sua universalidade.
Também
poderíamos supor, mas de modo secundário [como um símbolo
acidental], que esses mil anos são os da duração da Cristandade no
mundo. A Cristandade é um conceito técnico de significado bastante
concreto, e que se situa da proclamação do Cristianismo como
religião oficial, durante o reinado de Teodósio, até a rebelião
protestante. Depois de um milênio de Cristandade, essa realidade se
fragmenta, os cristãos se dividem, e essa divisão dos cristãos
favorece a ação do Demônio no mundo.
Finalmente,
para mim, esses mil anos são símbolo do que fora exposto no início
da resposta a essa questão. Porém, o segundo sentido também pode
ser aplicado, mas como símbolo consequente do primeiro símbolo.
71.
Que significado tinha o envio do bode a Azazel, descrito no livro do
Levítico?
“Aarão
lançará as sortes sobre os bodes: uma para YHVH, outra para Azazel.
Aarão,
então, apoiará suas duas mãos sobre a cabeça do bode e confessará
sobre ele todas as faltas dos filhos de Israel, bem como todas as
suas transgressões e pecados; os depositará sobre a cabeça do bode
e o enviará ao deserto, conduzido por um homem preparado para tal.
O
bode levará sobre si todas as iniquidades deles e será deixado por
si no deserto. A respeito daquele que conduzirá o bode para Azazel,
deverá lavar suas vestes e lavará seu corpo com água.”
(Lv
XVI, 8.21.22.26)
Esta
estranha entidade, chamada Azazel48, era misteriosa ainda poucos
séculos depois, mesmo entre os judeus. Não se sabe, com certeza,
nem a origem etimológica da palavra nem a mesma torna a figurar na
Bíblia. Mas, sempre houve um consenso entre os judeus era de que tal
entidade era, na verdade, um espírito maligno [i.e., um demônio].
Isto deduz-se do fato de que Azazel é retratado como sendo o oposto
Àquele a quem se oferece o cordeiro do Sacrifício na Tenda da
Reunião. Um cordeiro – o de YHVH – é o cordeiro sem mancha,
livre de defeitos, que é oferecido com toda a pompa dos ritos. E o
outro é um bode, o qual é abandonado no deserto com todos os
pecados.
O
sentido deste rito, descrito no Levítico, é que o bode de Azazel
carrega todos os pecados do Povo Eleito, leva embora o Mal de Israel.
O sacrifício imaculado é para YHVH, e o bode com as iniquidades
para Azazel. É como se fossem concentrados todos os pecados em um
único ser que Satanás devorará, ao estilo da bola de gordura e
pelos que traga o dragão do Livro de Daniel em seu capítulo XIV.
Estas
passagens bíblicas do bode de Azazel e do dragão de Daniel, em
minha opinião, são duas peças que, encaixadas à luz do Novo
Testamento, se complementa, trazendo um novo sentido, muito mais
profundo. Cristo seria o bode abandonado a Azazel, cordeiro que porta
todos os pecados e que é devorada pelo Dragão mas, que, devorada
por Satanás, deverá revirar as entranhas de Satanás49.
72.
Por que a Bíblia diz que os demônios estão nas regiões do Ar?
“Vistam
a armadura de Deus, para que possais resistir aos estratagemas do
Diabo; porque nossa luta não é contra os homens, senão contra os
Principados, as Potestades, contra os dominadores deste mundo de
Trevas, contra as forças espirituais do Mal que residem nas regiões
do Ar.” (Ef 6, 11.12)
As
Sagradas Escrituras, ao se referirem aos demônios, sempre os situam
em um de dois lugares: ou no Inferno (quer dizer, na região que está
abaixo, e é isso que significa inferno) ou no Ar. Ao dizermos que
estão no Ar, a única coisa que se quer expressar é que podem estar
em todas as partes (ou em qualquer parte).que não se limitam como
nós sobre a Terra, mas que se movem com completa liberdade. São
Paulo volta a falar disso ao mencionar o Diabo como o Chefe da
Autoridade do Ar (Ef 2, 2). Este versículo também nos é lícito
traduzir como Dominador do Poder do Ar.
Quando
as Sagradas Escrituras que alguns [demônios] estão no Inferno,
estão a dizer que não tentam aos homens? Provavelmente, sim,
significa isso. O que parece é que não há diferença entre estar
no Inferno e estar entre os homens, tentando-os.
73.
Por que, na Bíblia, Deus chama o Diabo de “Príncipe deste
mundo”?
Em
certas casos, a Bíblia usa expressões para se referir ao Diabo que
podem parecer exageradas. No entanto, todo o Livro Sagrado está
perfeitamente medido. Deus é o Dominus (Senhor) e o Rex (Rei),
estando estes dois termos reservados [somente] a Deus nas Sagradas
Escrituras. Há apenas um Rei e um único Senhor. Ou seja, há apenas
um detentor de todo o Poder e um único detentor de todos os
direitos.
Deus
é o Rei, enquanto o Diabo é o princeps (príncipe). Esta palavra,
em latim, expressa a ideia daquele que “é o primeiro, o que está
no lugar mais importante, o maioral entre os principais”. Existe
uma extensa Tradição, que remonta aos Santos Padres, que ensina que
o Diabo, antes de rebelar-se (contra Deus), era o mais belo e
poderoso de todos os seres angélicos (anjos). Mesmo sendo
extrabíblica esta Tradição, há certos versículos que, de forma
subliminar, estariam de acordo com ela. Assim, por exemplo, as
Sagradas Escrituras, ao denominar o Diabo de Príncipe deste mundo
está, sem dúvidas, dizendo que ele é o mais poderoso deste mundo.
74.
Por que o demônio Asmodeu fugiu quando Tobias queimou coração e
fígado de peixe?
Já
vimos, em uma questão anterior, que a matéria não tem poder algum
(em si mesma) que possa influir diretamente no espírito. Também
fizemos diferenciações concernentes a essa afirmação. Dito que
foi anteriormente, não foi, propriamente falando, alguma virtude
própria do coração e/ou fígado de peixe que fizera expulsar
Asmodeu, mas a obediência ao que o Anjo que lhe disse que fizesse. É
a obediência, e não aquelas vísceras, que propiciaram o exorcismo.
Em outras palavras: não é a matéria empregada no cumprimento da
ordem, senão o Poder de Deus, que expulsa o Demônio.
Do
mesmo modo, quando Deus, no Antigo Testamento, ordenara que se
sacrificasse um cordeiro no altar do Templo, visando a purificação
dos pecados, Ele sabia que a matéria que ali morria não propiciava
perdão algum, nem qualquer efeito espiritual, mas sim a obediência
a Deus, que prescrevia esse rito, o que purificava e provocava
efeitos espirituais. O rito, em si, não purificava, e era
tão-somente a verificação dessa obediência, sua confirmação
simbólica.
Essa
questão acerca das vísceras do peixe é muito útil para recordar
que, no exercício do ministério do exorcismo, tem-se que evitar
qualquer tipo de tentação de cair em espécies de práticas ditas
mágicas, ainda que seu conteúdo aparente ser cristão. É o Poder
de Deus que expulsa ao Demônio. Aquilo que exceda a simplicidade de
insistir por meio da oração e da aplicação sóbria dos artigos
bentos sobre o corpo do possesso, o que vá mais além da plana
transparência da Fé, é de um campo não só perigoso, mas também
errado. Não importa se alegamos estar operando com objetos benzidos
e com orações dirigidas a Deus, ainda assim redundará em práticas
ocultistas e mágicas.
Seria
praticar Magia, por exemplo, se seguíssemos um sacerdote que
prescrevesse a aplicação de uma mistura de óleo sagrado com água
benta (sobre o corpo do possesso) por quatro domingos consecutivos.
Ou, então, que se há de rezar uma oração sete vezes e que, depois
de cada recitação, há que se fazer o possesso beber água benta,
enquanto contempla uma imagem da Virgem. Essas coisas, ainda que
executadas como objetos de inspiração cristã, são práticas
mágicas. Pois, a confiança na libertação do possesso, aí, já
não se deposita na Fé em Deus e na oração dirigida a Ele, mas na
aplicação de um objeto, executada de modo perfeitamente meticuloso
para que funcione.
75.
Há algum simbolismo implícito neste coração e fígado de peixe
com Tobias?
Podemos
fazer uma leitura simbólica da ação de Tobias em relação ao
demônio Asmodeu, entendendo-a como alegoria da ação de Jesus em
relação ao Diabo. Não é à toa que, em hebraico, Tob significa
Bom50. A luta entre Tobias e o peixe seria alegoria da luta entre o
Bem por excelência – Jesus – e Leviatã (vide nota 46). Leviatã
é símbolo do Diabo, porém com atributos de serpente marinha.
Cristo vence e lhe arranca o coração e o fígado, queimando-os.
Isto produziria o exorcismo do Mundo, a esconjuração do Mal no
mundo humano. Ou seja: o poder de Satanás acaba por ser quebrantado
através da vitória de Cristo na Cruz. “Vi Satanás cair do Céu
como um raio”, dirá Jesus. Obviamente que o Mundo não estava
possuído por Satanás. Isso é uma metáfora [imagem], ainda que
Jesus tenha afirmado que este [Mundo] jaz nas Trevas.
O
casamento de Tobias com Sara, tendo esta sido libertada do Demônio,
será metáfora do casamento místico de Cristo com sua Igreja51. A
recuperação da visão do pai de Tobias seria símbolo da visão
espiritual recuperada, que fora perdida devido ao pecado. O sinal
messiânico contido nos episódios onde cegos começam a enxergar se
produz já no relato do Livro de Tobias com o fel do fígado do peixe
derrotado. O fel é símbolo do sofrimento redentor. O sofrimento de
Cristo nos devolvera a visão. Porém, para que se obtivesse esse
fel, que produz salvação, foi necessária essa luta contra Leviatã
[simbolizado em Tobias pelo peixe]. O fel, símbolo do sofrimento de
Cristo, aplicado por sua própria mão, devolvera a visão à
humanidade, essa mesma visão que havíamos perdido pela cegueira
causada pelo Príncipe deste mundo.
É
interessante observar que o fel amargo é produzido pelo peixe,
símbolo do Diabo [neste caso]. Ele o produz, e essa amargura ele a
guarda em seu ventre. Mas, esse mesmo fel – símbolo do sofrimento
–, nas mãos de Tobias – símbolo de Cristo –, se transforma em
remédio. Cristo transforma o sofrimento em antídoto, visando a
Redenção.
É
curioso também que somente uma vez – justamente no Livro de
Tobias, cap. 6, v. 5 – menciona-se o ato de salgar um peixe. Que
símbolo haveria no ato de salgar um peixe que simboliza Leviatã?
Creio que isto seja símbolo para “condenação eterna”. O peixe
salgado já não se corrompe [nem o poderia, se lhe fosse facultado
essa possibilidade]. Está morto, completamente morto, já não se
corrompe. Esse peixe salgado poderia ser uma representação da morte
eterna de Leviatã52.
76.
O que significa dizer que Jesus levou os demônios em cortejo
triunfal?
“Por
ela [pela Cruz], após despojar [Jesus Cristo] aos principados e
potestades, os expôs publicamente, levando-os em cortejo triunfal.”
(Colossenses 2, 15)
Quando
falou aqui São Paulo dos principados e potestades, ele está se
referindo aqui aos anjos pertencentes a essas duas hierarquias que se
revelaram. Há os principados e potestades que se mantiveram [na
ocasião da “batalha celeste”] fiéis a Deus e outros que se
tornaram demônios.
De
que Jesus Cristo despoja os rebeldes? De seu poder sobre a
humanidade. Os demônios, graças aos pecados humanos, haviam
conquistado um verdadeiro poder sobre estes pecadores. Essa
influência, exercida através da tentação, viria a ser
interrompida, graças à Cruz. A Cruz vai muito além de apenas
limitar o poder dos demônios sobre a Terra, mas, sim, o destrói
completamente. A Redenção, assim, é uma Libertação, como fora a
do Povo Eleito no Egito. O Povo Eleito escapou do jugo do pecado.
Esse é o fim do predomínio dos principados e potestades.
São
Paulo, quando nos diz que Cristo levou os principados e potestades em
seu cortejo triunfal, está pensando na imagem vitoriosa dos generais
romanos entrando na Urbs [cidade de Roma], seguidos a pé pelos
caudilhos inimigos derrotados. Esta referência literária quer
expressar que, entre Cristo e Satanás, houve uma verdadeira luta.
Uma luta espiritual [combate de ideias, a nível intelectual e
volitivo], mas autêntica e verdadeira luta.
De
qualquer modo, o cortejo que levava os vencidos não era como
costumava-se ter em conta como os cortejos de vencidos em nosso mundo
material. Os espíritos não ocupam lugar no espaço, nem pode-se
ordená-los em filas. Mas, a exibição pública, da qual nos fala
São Paulo, foi a humilhação diante de todos os anjos e
bem-aventurados de todas essas vitórias, uma a uma, que logrou
[Jesus] nessa batalhas do Espírito contra os Malignos.
77.
Por que chama-se o Diabo de Acusador?
“(...)
porque foi expulso o Acusador de nossos irmãos, aquele que nos
acusava diante de nosso Deus, de dia e de noite.” (Ap 12, 10)
Satanás
se regozija a cada vez que os seres humanos pecam, e não deixa
passar sequer uma oportunidade de dizer a Deus sempre que tal ou qual
alma tenha caído [em pecado]. Satanás, quando quer falar com seu
Criador, tem apenas que dirigir-se a Ele. Deus escuta tudo o que Lhe
é dito. Ou seja: conhece todas as espécies inteligíveis que
procedam dos demônios. O Demônio não necessita a nenhum lugar
[quando quer falar a Deus], pois Deus está em todos os lugares. Que
Satanás recorde a Deus os pecados que cometemos é o que se quer
expressar quando se diz que ele nos acusa [diante de Deus]. Essa
comunicação entre Deus e Satanás vem relatada tanto no livro de
Jó, quando ambos conversam entre si, como no livro do profeta
Zacarias [cf. Zc 3, 1].
A
única coisa que Satanás deseja com isso é recordar Deus de seus
triunfos sobre nós. Após o Juízo Final, já não se cometerão
mais pecados, deixando, então, o Diabo de nos acusar.
78.
Conversam entre si Deus e o Diabo?
No
desenvolvimento da questão anterior, ficou claro que, sim, Satanás
fala às vezes com Deus para lançar-Lhe em riste53 os pecados que
cometemos. Mas essa não é uma verdadeira e autêntica conversação.
Ocorrem, realmente, essas conversações?
Ainda
que ambos sejam dois seres espirituais, e seres espirituais, por
natureza, sejam afeitos à comunicação entre si, essas conversações
não ocorrem. E isso se deve ao fato de que não interessa ao Diabo
entabular uma conversa com Aquele ao Qual odeia com todas as suas
forças. E, da parte de Deus,, tampouco há inclinação de falar com
aquele que exala por Ele ódio continuamente. Deus tem sua dignidade,
e não quer conversar com aquele que O insulta e contra Ele blasfema
sem cessar. Não quer conversar porque, na realidade, não há nada
sobre o que conversar.
79.
É lícito insultar os demônios?
“Disse,
pois, o Anjo do Senhor a Satanás: ‘Repreenda-te o Senhor, ó
Satanás, repreenda-te o Senhor, que escolheu Jerusalém!’ ” (Zc
3,2)
“No
entanto, estes videntes (...) amaldiçoam os seres gloriosos. O
Arcanjo Miguel, por sua vez, quando disputava com o Diabo o corpo de
Moisés, não se atreveu a pronunciar sentença injuriosa, mas apenas
disse: ‘Que o Senhor te repreenda!’. (Jd 1,9)
“Atrevidos,
arrogantes, não tremem quando amaldiçoam os seres gloriosos,
enquanto os anjos, que são superiores [aos demônios] em força e
poder, não pronunciam contra eles sentença injuriosa, na presença
do Senhor.” (2 Pd 2, 10.11)
Os
textos, tanto de São Pedro, como da epístola de São Judas Tadeu,
são provas de que, naquela época, houve algum tipo de culto pagão
que, entre seus ritos, praticava-se o insulto a entidades espirituais
malignas. Poderiam muito bem se tratar dos dæmones (gênios) ou,
quem sabe, mais provavelmente, de determinados eones figuras
espirituais que apareciam entre as doutrinas gnósticas. Os textos
deixam claro que somente insultavam as entidades malignas. Todavia,
ambos os Apóstolos censuram tal prática, já que dizem que nem os
anjos insultam aos demônios. O demônios, não obstante sua rebelião
[contra Deus], seguem tendo uma natureza gloriosa, muito superior às
naturezas do Universo material. E, por isso, os anjos não os
insultam, se recusam a insultar seres cuja natureza supõe a aurora
da Criação de Deus.
Tais
versículos interessantíssimos nos mostram que é suficiente para
atormentar os demônios que se peça a Deus que os contenha ou
repreenda. Pois, inclusive os demônios, anjos rebeldes, não podem
resistir ao Poder Divino quando este refreia as potências de sua
natureza. E, inclusive, quando muito pior, os repreende. A repreensão
de Deus deve ser algo terrível, haja visto que os anjos ameaçam aos
demônios com ela.
Os
anjos estão diante da Presença do Altíssimo, e a santidade d’Ele
é tão grande que não querem manchar suas bocas com expressões
ofensivas contra algo ou alguém. Por isso, nesses dois casos dos
quais falam os dois Apóstolos supracitados, limitam-se a dizer-lhes
que vão pedir a Deus que os contenha e repreenda. Os anjos não
insultam, mas somente amar e abençoar. Assim, o ensinamento desses
versículos é claro: ninguém deve insultar os demônios! Ninguém
deve insultar a quem quer que seja, nem mesmo aos demônios.
Nos
exorcismos, os demônios podem ser chamados de serpente, dragão,
besta imunda, etc., mas tais termos não são insultos, mas
exatamente distintivos do que realmente são, ainda que tais termos
os atormente. A eles dizemos a verdade para que não resistam mais ao
sofrimento advindo de ouvir a verdade e saiam. Mas, deve-se dizer
essas coisas [e todas as outras fórmulas contidas nos manuais de
exorcismos autorizados] sem ódio. Com autoridade e firmeza, mas sem
ódio. O ódio para nada servirá, pois o mesmo não procede de
Deus.
80.
Por que São Tiago diz que os demônios creem em Deus?
No
seminário, quando eu ainda era um jovem imberbe e, apesar disso, era
cabeludo, o professor da disciplina de Sagradas Escrituras leu para
seus alunos o texto de Tiago 2, 19:
“Crês
tu que há um Deus? Fazes bem! Até os demônios o creem e, no
entanto, tremem.”
E
nos disse que, ainda que o texto original grego utilize o verbo
“crer”, o que o Apóstolo São Tiago queria dizer era que até os
demônios sabem que Deus existe e que tremem [por esse fato].
A
explicação do professor me satisfez completamente. Não apenas me
parecia verossímil, como também a única [explicação] possível.
Os demônios não poderiam ter Fé, pois já sabiam que Deus existia
– pensava eu. No entanto, apenas uma coisa não me deixava
confortável neste tema do dito verbo grego: por que o Apóstolo usou
uma palavra se queria dizer outra? Por que usou o verbo crer se
poderia ter usado o verbo saber? O assunto me permaneceu
desinteressante por uns quinze anos em minha memória, até que a
conversa com um demônio, durante um exorcismo, me deu a chave para a
questão. Foi uma resposta que não teria obtido, mesmo se eu tivesse
refletido por mais outros anos. Procurei aquele diálogo com o
demônio, mas não o encontrei nem o transcrevi ao terminar aquela
sessão de exorcismo. Mas, essencialmente, a resposta à questão que
citei foi como segue:
Os
demônios não veem Deus. Sabem que Ele existem, mas não o podem
ver. Mediante sua Inteligência, sabem que há um Ser espiritual que
não é apenas mais um espírito [como eles ou outros quaisquer], mas
a mesma Divindade. Mas, somente os Bem-aventurados são capazes de
vê-Lo. Os demônios escutaram-No (ou seja, têm conhecimento das
espécies inteligíveis que Deus comunicou-lhes diretamente), viram
seus feitos (por exemplo, a Criação do Universo), mas não puderam
contemplar Sua Essência. Sua inteligência lhes diz que o Criador, o
Motor Imóvel, tem de ser um Ser infinito. Mas, ainda que saiba de
Sua Existência, não viram o que podem ver os Bem-aventurados. E,
nesse sentido, pode-se dizer que eles creem, sem que, no entanto,
tenham visto.
Mas,
não é uma Fé sobrenatural, senão que eles creem que existe o que
suas inteligências lhes afirmam que deve existir. Ou seja: creem que
Ele deve ser do jeito que suas inteligências lhes dizem que Ele deve
ser.
Colocarei
aqui um exemplo desta fé natural: não tenho sequer a mínima dúvida
de que o continente asiático existe, ainda que jamais tenha estado
lá nem tenha o visto. Creio que existe [a Ásia] somente
necessitando da Inteligência, de modo natural. Assim ocorre de forma
semelhante com os demônios. Assim como crer na existência da Ásia
não é um ato sobrenatural, assim também os demônios creem em Deus
[ou seja, na existência de Deus] de um modo natural. Mas, saber que
[Deus] existe, e tem de existir, não podendo ser de outra maneira,
não lhes traz prazer, senão pesar.
Por
que diz o Apóstolo que, por isso, [os demônios] estremecem?
Estremecem por saber que tal felicidade [a da visão beatífica da
Essência de Deus] existe e dela não podem usufruir. O que os
atormenta não é tanto ter perdido a Deus, senão ter perdido a
Bem-aventurança, a Felicidade de [estar em] Deus. Tampouco viram
jamais essa tal felicidade, nem dela fruíram. No entanto, sabem que
ela existe.
Também
estremecem porque temem o castigo de Deus. Odeiam-No, e temem que Ele
aja como eles, de um modo vingativo diante de tal ódio [deles, dos
demônios]. Pois, eles veem-No de acordo com a deformação de suas
inteligências.
81.
Os fatos contidos no Livro de Jó são históricos?
Muitas
pessoas afirmam que o Livro de Jó não passa de uma narração
fictícia. Contra essa opinião, estão os dados concretos acerca da
região e tribo às quais pertencia [Jó], além da afirmação
contínua do povo judeu que o livro é, sim, histórico. Não há
dúvida de que o grande argumento contrário à historicidade do
livro reside nos desastres provocados por Satanás contra o justo [ou
seja, Jó] no primeiro capítulo. Se lermos o texto, reconheço que
fica difícil de acreditar em tais desastres. Mas, se analisarmos
novamente o texto, veremos que tudo que ocorre se resume:
Ao
furto dos rebanhos;
Á
morte de animais menores, sem informação de números, por um raio;
A
um acidente posterior, que acaba matando seus filhos.
Isso
é tudo [o que há de “incrível”]. Após isso, Jó cai de cama,
doente. Em minha paróquia, já tive de notícias de desgraças e
acidentes tão concatenados como aqueles que afligiram Jó, de acordo
com seu relato, contido no Antigo Testamento. Inclusive o caso de um
raio que dizima todo um rebanho é algo que já ouvi dizer ter
acontecido próximo de minha terra natal. Portanto, sustento que os
fatos narrados no Livro de Jó são históricos, pois os detalhes
contidos nele nos induzem a pensar justamente assim.
82.
Por que diz-se que Leviatã tem várias cabeças?
Se
Leviatã é somente um, se é uma personalidade única, por que, em
Salmos 74, 14, diz-se : “Tu despedaçaste as cabeças de Leviatã”?
Da
mesma maneira que o Sumo Pontífice é a cabeça visível da Igreja.
E, assim como cada Pontífice é uma personalidade distinta, e cada
um é cabeça da Igreja à sua vez. De forma semelhante também, há
personagens, ao longo da História, que são cabeças visíveis e
manifesta da iniquidade e do poder de Satanás. Sem dificuldades,
podemos rastrear e achar essas cabeças nos relatos históricos:
Antíoco Epífanes, Nero, Diocleciano, Napoleão, Hitler, Stálin,
Pol Pot, etc.
Mas,
se a cada momento a Igreja tem uma só cabeça [visível], o Mal e a
Iniquidade podem ter várias cabeças simultaneamente. A Igreja forma
um Corpo Místico; o Mal não [pode formar um corpo semelhante]. O
Bem é Ordem, Unidade. O Mal é desordem, dispersão.
83.
Por que Satanás é retratado mais vezes no Novo Testamento do que no
Antigo?
O
termo Satanás figura 18 vezes no Antigo Testamento. No Novo
Testamento, tal termo aparece 35 vezes, e o termo Diabo 36 vezes. O
termo demônio[s] acha-se 21 vezes no Novo Testamento, enquanto no
Antigo Testamento os termos equivalente a demônio (seirim, Lilith,
etc.) muitas vezes menos. O Novo Testamento é bem menos extenso e,
todavia, no qual aparecem muito mais vezes os termos relativos aos
demônios. Por que?
Penso
que isso se deve a que Deus não tenha permitido que fosse infundido
demasiado temor ao Povo Eleito. Tampouco quis se implantasse a falsa
crença de um dualismo maniqueísta, em iguais condições, com um
suposto “deus do bem” e um “deus do mal”. O paralelismo que
se faria impor esse dualismo seria simples: um Deus do Bem e um deus
do Mal, cada qual com seus anjos. Por isso, Deus não apenas silencia
a figura dos demônios como também vai mais além. Não somente a
figura central será Deus, como também o mundo angélico aparecerá
em ocasiões excepcionais, para não dar espaço para o surgimento de
cultos idolátricos. No entanto, no Novo Testamento, a Revelação
pode ser já completada, e se demonstra, de um modo mais profundo, a
existência desse mundo espiritual [angélico].
84.
O Anticristo é o Diabo?
Muita
gente, dentre inclusive o Clero, identifica a figura bíblica do
Anticristo com a do Diabo. Claro que isso é um equívoco! O
Anticristo é sempre apresentado no Apocalipse como sendo um homem.
Expressamente, no Apocalipse54, diz-se que 666, o número da Besta, é
o número de um ser humano. Logo, se é um ser humano, não é um
espírito. O Anticristo não é o Demônio, então, senão um homem
que promove o ódio, a guerra e o Mal. Nero, Napoleão e,
especialmente, Hitler são figuras e esboços do Anticristo
definitivo e pleno.
Também
tem-nos muito a dizer seu próprio nome: Anticristo. Ou seja:
trata-se de uma figura contrária a Cristo. Cristo era um homem; o
Anticristo também. Cristo espalhou o Amor, a Paz e a Misericórdia.
O Anticristo propagará o ódio, a guerra e a vingança. Ambos
fizeram grandes coisas em suas vidas, ambos terão seus seguidores. O
primeiro é a figura humilde que foi crucificado, enquanto o outro é
a figura soberba e triunfante. Um tem Deus por Seu Pai, enquanto o
outro tem o seu, Satanás.
85.
Satanás pode ter um filho?
Não,
é absolutamente impossível que um espírito possa engendrar um
filho. O espírito não pode procriar carnalmente. Ao ser imaterial,
é vedado fecundar o que quer que seja. A ideia que surge em algumas
obras de ficção e filmes, de que, no Fim dos Tempos, o Diabo
engendrará um filho seu – o Anticristo –, não só é
extrabíblica, com também teologicamente impossível.
Ainda
que apareça com forma corporal, não deixa de ser mera aparência.
Essa aparência não é um corpo, pois ele [o Diabo], não tem um
corpo. Essa aparência com que ele se manifesta é algo completamente
exterior ao seu ser.
Poderíamos
pensar que o Demônio seria capaz de aparecer portando um óvulo
tomado de uma mulher, ou um espermatozoide tomado de um homem, e que,
assim, seria possível manter uma relação. Essa possibilidade nunca
se tornaria factível. Mas, ainda que se tornasse factível, o
problema da impossibilidade da paternidade do Diabo segue insolúvel,
pois essa aparência física seria apenas uma portadora de uma
semente alheia. Ainda que pudesse manter uma relação, em que ou
pudesse fecundar uma mulher ou fosse fecundado esse óvulo, o
problema seguiria sendo o mesmo: terá sido apenas o portador daquele
óvulo ou espermatozoide alheio [e não a origem]. Olhe-se como se
queira a situação, o Diabo não pode ter um filho.
86.
Cabe uma paternidade espiritual ao Diabo?
Sim,
o único modo possível de paternidade ao Diabo é a espiritual. Ou
seja, do mesmo modo que aquele que faz as obras de Deus, acaba
assemelhando-se mais ao seu Pai, assim, também, aquele que pratica
as obras da Iniquidade acaba por parecer mais ao Pai da Iniquidade.
Neste sentido, sim, há uma espécie de paternidade espiritual. Por
isso, nos Atos dos Apóstolos [13, 10], se diz que o mago [Simão[
Barjesus era filho do Diabo. Também, por isso, João diz [em 1 Jo 3,
8] que aquele que comete pecado procede do Diabo. Dois versículos
depois [1 Jo 3, 10], é dito que nisso, se mostram os filhos de Deus
e os do Diabo. Jesus, em Jo 8, 44, diz: “vós sois filhos de vosso
pai, que é o Diabo”.
87.
A Besta do Apocalipse é o Diabo?
94.
Deus pode perdoar os demônios?
No
ano 543 da era Cristã, o Papa Virgílio proclamou: “Se alguém
disser ou pensar que o castigo dos demônios ou dos homens ímpios é
temporário e terá um fim, ou que poderá ocorrer a reabilitação
ou redenção dos demônios ou dos homens ímpios [condenados], seja
anátema!” (DS 411)55.
Deus
pode perdoar qualquer pecado, por mais grave que seja. Mas Deus não
pode perdoar um demônio. Porque Deus não pode perdoar quem não se
arrepende [nem quer se arrepender] de seu pecado. Fazer tal coisa
provocaria uma desordem não só conceitual, mas também prática, e
Deus não pode propugnar desordens. Como se vê, o problema não está
no pecado em si (Deus pode perdoar tudo, e o quer), mas na Vontade do
pecador (Deus não pode cercear a Vontade livre).
Como
já dito anteriormente, há muitas pessoas que pensam que Deus não
deveria ser tão severo, perdoando os condenados. Mas, pela razão já
aduzida, o mesmo Deus que pode criar milhões de mundos apenas com
seu querer, não pode perdoar nem mesmo a um demônio sequer. Deus
Onipotente, que pode tudo, não pode o impossível. E é-Lhe
impossível criar uma Vontade livre para depois obriga-la a se
arrepender [o que seria uma contradição, e Deus não se contradiz].
Terrível advertência aos que transgridem a Lei de Deus, com toda a
tranquilidade, uma e outra vez, dizendo-se a si mesmo: “Ah, Deus me
perdoará tudo!”. Aqueles que agem assim [...]56.